A quarta-feira negra do rei
Manuscrito de Melo Morais retrata o abatimento de D. João VI nos dias que antecederam seu regresso a Lisboa, em contraste com a euforia de D. Carlota
Marcello Scarrone
“No Brasil é que fui rei; isto aqui não vale nada, é menos que o ducado de Lucca. Portugal é um canapé no Palácio da Espanha, e não vale mais nada”. Desta forma, triste e amargurada, desabafava, numa conversa com um oficial de gabinete, D. João VI, pouco tempo depois de seu regresso a Lisboa, ainda em 1821.
O relato nos chega por intermédio de Alexandre José de Melo Morais (1816-1882), médico, político e historiador alagoano, num manuscrito repleto de detalhes curiosos sobre muitos dos eventos ligados ao período joanino.
Conservado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional e catalogado com o título de “Dados sobre a chegada ao Rio de Janeiro da Família Real, problema de habitação para a comitiva, vida social e política, hábitos da Família Real, volta para Portugal, falecimento de D. João VI e Pedro I como imperador”, o documento, sem data nem local, se apresenta incompleto pela ausência de algumas folhas. As 145 remanescentes narram a viagem da corte portuguesa para o Brasil, sua instalação nos trópicos e seu regresso à pátria, com vivacidade e riqueza de pormenores, embora o autor raramente faça menção às fontes utilizadas para compor o quadro de sua crônica. Autor de várias obras sobre a história nacional, do período colonial até a época imperial, Melo Morais deve ter reunido, nestas páginas manuscritas, dados e informações que posteriormente serviram-lhe para a redação de seus livros.
Muitas são as referências que o historiador faz à tristeza do monarca durante os meses que separam a chegada das noticias sobre a revolução em Portugal e sua decisão de deixar o Brasil. “O rei vivia triste, abatido, embezerrado, (...) Quando no dia 26 de fevereiro [de 1821] o trouxeram de São Cristóvão para a cidade, foi rodeada sua traquitana pelos corifeus da revolução, [como] os celebres Padre Góis, Padre Macambôa, Pimenta, e o famigerado Porto, que foi empresário do Teatro de são João (hoje de são Pedro) e outros, que na praça do Teatro ou Rocio, mandando tirar as bestas da sege, fizeram que algumas pessoas do povo que gritavam – Viva el Rei Constitucional – puxassem-lhe a mão a carruagem. O rei (...) banhou-se em lagrimas, e de quando em quando limpava os olhos até chegar ao Paço da Cidade. Nesse dia decidiu-se a partida do rei para Portugal”. Também depois do decreto de 7 de março, que oficializa a decisão, “às vezes chorava – dizia a marquesa de Jacarepaguá, educada no Paço e familiar da camareira-mor da rainha-mãe”.
O amor do rei para a terra que estava prestes a abandonar é lembrado inúmeras vezes por Melo Morais, como quando escreve: “Sonho dele era fazer do Brasil o maior império do mundo. Pretendia mandar vir famílias de agricultores para as diversas províncias, reservando Portugal para um príncipe sujeito ao seu governo. Pretendia estabelecer uma colônia de pescadores na enseada das Garoupas em Santa Catarina, outra de lavradores portugueses nas margens do Itajahy, outra em Cantagallo”.
Quem não chorava nem se afligia pelo regresso a Portugal era a rainha. O manuscrito de Melo Morais afirma que “Dona Carlota parecia andar endiabrada. Gritando dizia que, chegando a Lisboa, ficaria cega, porque tinha vivido treze anos no escuro, só vendo negros e mulatos. E então tudo o que havia de ruim ou de péssimo dizia do Brasil, que a havia recebido com indizível hospitalidade, nos dias do infortúnio. Quando chegou essa pérola [o grifo é do autor!] a Lisboa, chutou ao mar os sapatos, dizendo que não queria pisar na terra de Lisboa com sapatos levados do Brasil. Ao saltar ajoelhou e beijou a terra que muito logo a não queria”. E a pena mordaz do autor não poupa insinuações sobre as virtudes conjugais da rainha: “As filhas mais moças também diziam que queriam ir para Lisboa porque essa terra do Brasil não prestava para nada. E tinham razão, o pai lá havia ficado”.
O embarque dos monarcas se deu na madrugada de 25 de abril, uma quarta-feira. Lembra o autor do manuscrito que naquele dia Carlota Joaquina completava 46 anos, mas ela não fez questão de festejar o aniversário nem de dar beija-mão. “No dia seguinte, às 6 da manhã, suspendeu ferro as naus, 6 e 45 se fez vela (...) Com um vento NE fresco, os navios desaparecem à vista da multidão do povo”.
Quem sabe nos pensamentos de D. João a bordo estivesse também a lembrança de que no mesmo dia, talvez na mesma hora, 321 anos antes, os seus patrícios, recém chegados, celebravam a primeira missa naquele solo brasileiro que ele agora estava deixando para sempre.
O relato nos chega por intermédio de Alexandre José de Melo Morais (1816-1882), médico, político e historiador alagoano, num manuscrito repleto de detalhes curiosos sobre muitos dos eventos ligados ao período joanino.
Conservado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional e catalogado com o título de “Dados sobre a chegada ao Rio de Janeiro da Família Real, problema de habitação para a comitiva, vida social e política, hábitos da Família Real, volta para Portugal, falecimento de D. João VI e Pedro I como imperador”, o documento, sem data nem local, se apresenta incompleto pela ausência de algumas folhas. As 145 remanescentes narram a viagem da corte portuguesa para o Brasil, sua instalação nos trópicos e seu regresso à pátria, com vivacidade e riqueza de pormenores, embora o autor raramente faça menção às fontes utilizadas para compor o quadro de sua crônica. Autor de várias obras sobre a história nacional, do período colonial até a época imperial, Melo Morais deve ter reunido, nestas páginas manuscritas, dados e informações que posteriormente serviram-lhe para a redação de seus livros.
Muitas são as referências que o historiador faz à tristeza do monarca durante os meses que separam a chegada das noticias sobre a revolução em Portugal e sua decisão de deixar o Brasil. “O rei vivia triste, abatido, embezerrado, (...) Quando no dia 26 de fevereiro [de 1821] o trouxeram de São Cristóvão para a cidade, foi rodeada sua traquitana pelos corifeus da revolução, [como] os celebres Padre Góis, Padre Macambôa, Pimenta, e o famigerado Porto, que foi empresário do Teatro de são João (hoje de são Pedro) e outros, que na praça do Teatro ou Rocio, mandando tirar as bestas da sege, fizeram que algumas pessoas do povo que gritavam – Viva el Rei Constitucional – puxassem-lhe a mão a carruagem. O rei (...) banhou-se em lagrimas, e de quando em quando limpava os olhos até chegar ao Paço da Cidade. Nesse dia decidiu-se a partida do rei para Portugal”. Também depois do decreto de 7 de março, que oficializa a decisão, “às vezes chorava – dizia a marquesa de Jacarepaguá, educada no Paço e familiar da camareira-mor da rainha-mãe”.
O amor do rei para a terra que estava prestes a abandonar é lembrado inúmeras vezes por Melo Morais, como quando escreve: “Sonho dele era fazer do Brasil o maior império do mundo. Pretendia mandar vir famílias de agricultores para as diversas províncias, reservando Portugal para um príncipe sujeito ao seu governo. Pretendia estabelecer uma colônia de pescadores na enseada das Garoupas em Santa Catarina, outra de lavradores portugueses nas margens do Itajahy, outra em Cantagallo”.
Quem não chorava nem se afligia pelo regresso a Portugal era a rainha. O manuscrito de Melo Morais afirma que “Dona Carlota parecia andar endiabrada. Gritando dizia que, chegando a Lisboa, ficaria cega, porque tinha vivido treze anos no escuro, só vendo negros e mulatos. E então tudo o que havia de ruim ou de péssimo dizia do Brasil, que a havia recebido com indizível hospitalidade, nos dias do infortúnio. Quando chegou essa pérola [o grifo é do autor!] a Lisboa, chutou ao mar os sapatos, dizendo que não queria pisar na terra de Lisboa com sapatos levados do Brasil. Ao saltar ajoelhou e beijou a terra que muito logo a não queria”. E a pena mordaz do autor não poupa insinuações sobre as virtudes conjugais da rainha: “As filhas mais moças também diziam que queriam ir para Lisboa porque essa terra do Brasil não prestava para nada. E tinham razão, o pai lá havia ficado”.
O embarque dos monarcas se deu na madrugada de 25 de abril, uma quarta-feira. Lembra o autor do manuscrito que naquele dia Carlota Joaquina completava 46 anos, mas ela não fez questão de festejar o aniversário nem de dar beija-mão. “No dia seguinte, às 6 da manhã, suspendeu ferro as naus, 6 e 45 se fez vela (...) Com um vento NE fresco, os navios desaparecem à vista da multidão do povo”.
Quem sabe nos pensamentos de D. João a bordo estivesse também a lembrança de que no mesmo dia, talvez na mesma hora, 321 anos antes, os seus patrícios, recém chegados, celebravam a primeira missa naquele solo brasileiro que ele agora estava deixando para sempre.
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