Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

GRANDES NAVEGAÇÕES

TEMPEROS

Nos mapas mais antigos, o pouco que se sabia do mundo aparecia meio de lado. Se já soubessem do Brasil, a sua costa estaria virada para cima. Isso porque tudo se orientava - daí a palavra - pelo oriente, onde nascia o sol. O norte da época era o Leste. Depois descobriram o pólo magnético, e os cartógrafos botaram as coisas nos lugares onde estão até hoje, só com mais detalhes.
História e geografia eram as minhas matérias favoriyas na escola, e olhar mapas uma mania. Por aqueles mares antigos andavam as naus da minha infância, carregadas de especiarias. (como seria bom estudar se não fosse a matemática, o portugues, a educação física ...)
Eu não entendia muito bem o que eram especiarias. O dicionário dizia que eram condimentos, mas eu não conseguia imaginar barcos carregados de pimenta, galeões abarrotados de canela, caravelas cheias de cravo. Ou caravanas terrestres desafiando cordilheiras, tempestades; desertos e bandidos para manter a Europa suprida de - noz-moscada? Mas estava lá nos livros de história, o mundo sendo tecido pelas rotas de aromáticos, grandes aventuras de descobrimentos e conquista regidas pelo gengibre e a hortelã.
Eu entendia o ouro e a prata e a cobiça dos piratas, não entendia que se matasse por temperos. Havia algo de estranho e desproporcional naquele empreendimento, homens rudes lançando-se contra o desconhecido e a morte pelo rosmaninho, navios engolidos pelo abismo e deixando na superfície, como um irônico comentário da sua passagem, apenas uma sopa de ervas, sua única carga. Não dava para conceber o Barba Negra abordando um navio, encostando a ponta da sua espada no pescoço do comandante e dizendo:
- Quero todo o seu cominho.
Era a poluição inocente: se se rompesse um porão de navio as praias se cobriam de grãos de mostarda, as gaivotas se intoxicavam com aroma de baunilha . Desastre ecológico era quando os peixes engoliam alho e alcaparras e já eram pescados prontos.
Depois eu cresci e a história perdeu sua ingenuidade, ou eu perdi a minha. Especiarias eram cargas poéticas comparadas com o minério e o petróleo nos supercargueiros de hoje, mas não havia nada de inocente na competição das grandes potências pelas suas fontes e pelo controle das suas rotas. Quando os mongóis e os turcos interromperam o suprimento de condimentos do Oriente por terra e a Europa descobriu que não podia viver sem comida temperada, a exploração das rotas marítimas ganhou um grande impulso e a era dos descobrimentos começou.
A América é um produto da deformação do paladar europeu. O colonialismo nasceu da inconformidade do Ocidente com sua comida insossa, além da fome de ouro, prata e espaço. O comércio de especiarias deu origem ao comércio de escravos para o Novo Mundo, os novos hábitos precisavam ser supridos em escala inédita e os escravos indígenas não estavam dando conta. Não dá pra calcular quantos morreram na viagem ou no trabalho escravo para que a classe operaria inglesa pudesse ter açúcar no seu chá (todos os dias). Dá para fazer uma tese sobre a influência das papilas gustativas sobre a marcha da história e o destino de civilizações. E um paralelo entre o que ia daqui para adoçar ou apimentar a vida dos europeus e o que os europeus hoje vem buscar, em grupos, para condimentar sua vida sexual, no Rio e no Nordeste. Tudo é apetite. Nada disto teria acontecido se a Europa se contentasse com sua comida nativa, incluindo suas mulheres sem sal.
Pode-se imaginar a Europa antes do seculo 16 como um organismo virgem cujo único arrebatamento- o êxtase religioso - não era dos sentidos. Nada tinha muito gosto ou muita graça, salvo alguns cogumelos. Todos os estimulantes que a enfeitiçariam ainda estavam para ser descobertos: o chá, o cafe', o fumo. E o chocolate. Depois que Cortez trouxe o chocolate para a Espanha do México - onde diziam, Montezuma tomava vários copos antes de visitar suas mulheres -, começou um culto ao chocolate na Europa, uma descoberta emocional que desde então se repete através da história cada vez que uma criança prova seu primeiro brigadeiro. O mundo corrompeu os sentidos da Europa, e a Europa, enlouquecida, comeu o mundo.
Cocaína parece açúcar. Hoje, enquanto supercargueiros fazem o tráfico oficial do ferro e do óleo e das outras sérias necessidades do Ocidente, as novas especiarias viajam escondidas. A realidade domina os mares, o barato vai por rotas tortuosas com a polícia atrás. O apetite do Ocidente hoje é pelo delírio, não pela noz-moscada.
No fundo é a mesma inconformidade com a mesmice, só que agora a vida é que é intragável e o condimento vai direto no nariz ou na veia. E o tempero mata. Quem transporta drogas na roupa, no fundo falso ou até no estômago é chamado de "mula" e há no apelido uma vaga evocação das caravanas do Oriente com especiarias para a Europa, enfrentando bárbaros e ursos em vez de fiscais da alfândega.
O Mundo dá muitas voltas, e a cada volta fica menos romântico e mais ordinário. Como nós todos.
Luiz Fernando Verrissimo

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