Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

EPIDEMIAS E SAÚDE PÚBLICA NO RIO ANTIGO


Tampe bem o seu tonel
Proposta para o transporte de excrementos retrata uma época em que o Rio buscava soluções para a saúde pública e as epidemias
Fabiano Vilaça
Foi-se o tempo em que os primeiros meses do ano no Rio de Janeiro prometiam apenas dias de sol forte e praia garantida até tarde graças ao horário de verão. Nos últimos anos, os cariocas têm enfrentado um inimigo que rivaliza com as belezas que fizeram do Rio a Cidade Maravilhosa: a dengue. As epidemias de hoje lembram uma época em que os surtos eram ainda mais comuns. No Império, cólera, tifo, febre amarela, entre outras moléstias típicas de uma cidade desprovida de sistema de recolhimento de esgotos, faziam parte do cotidiano da população.
Para acabar com elas, médicos, higienistas, políticos e a imprensa discutiram à exaustão uma série de medidas de saúde pública. No século XIX, a falta de higiene era apontada como a principal causa das epidemias que assolavam o Rio. Animais vagavam pelas ruas e inevitavelmente atendiam ao “chamado da natureza” por onde passavam; valas abertas cortavam os logradouros públicos; corpos eram enterrados no interior de igrejas – nada pior do que o cheiro dos cadáveres em decomposição misturando-se ao incenso usado nas missas!
E ainda havia os “tigres”, escravos que na calada da noite transportavam barris com fezes e urina para jogá-los em praias e valas. Quando o nauseabundo carregamento transbordava, escorria pelos seus corpos formando listras que justificavam o apelido. Como escreveu o historiador Jaime Benchimol no conhecido livro Pereira Passos: um Haussmann tropical, “as valas, sumidouros e fossas negras causavam a infecção do lençol de água subterrâneo e, segundo as concepções médicas ainda dominantes, contaminavam o ar com seus pútridos miasmas”. Os miasmas foram considerados os culpados pelas epidemias de cólera e de febre amarela que ocorreram no Rio por volta de 1850.
Entre aquelas epidemias e a instalação de esgotos nas casas – só em 1862 uma companhia estrangeira receberia a concessão do governo imperial para o serviço –, surgiu um projeto para aprimorar o método de coleta das excreções. A idéia está nos Desenhos de tonéis e carros para o transporte de dejetos sanitários produzidos na cidade, de autoria desconhecida e datados de 1854. Não se sabe se o autor era um médico, mas certamente os Desenhos estão em sintonia com o debate científico da época em torno da salubridade pública. Distribuídos em cinco pequenas pranchas, eles fazem parte da Coleção Figueira de Mello, localizada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e ilustram meios de conduzir os resíduos humanos sem sujeira nem constrangimentos: nada de “tigres” e fezes escorrendo.
Na primeira prancha, “modelo de tonel e quartola” (pipa com capacidade para ¼ de tonel), explica-se que ambos teriam tampas travadas com uma haste de ferro e deveriam ser untados com “bitume (sic) ou uma espécie de preparação argilosa, a fim de impedir qualquer emanação ou derramamento”. Quer dizer, tudo hermeticamente fechado: “o tampo das quartolas [indicado pela letra a] é da mesma dimensão que o tampo dos tonéis para que os urinóis possam ser despejados com facilidade e sem extravasação (sic)”. Para carregar os tonéis e quartolas, contendo também “águas mortas” (sujas), foram projetados carros especiais.
As breves instruções sobre os inventos não previam quem conduziria os carros, se escravos ou animais de tração. Para evitar qualquer contratempo durante o trajeto – que, aparentemente, ainda terminaria nas valas e praias da cidade –, cada carro deveria carregar uma reserva do preparado usado para vedar tonéis e quartolas.
Embora pensados para dar fim às emanações pestilentas e aos miasmas, os desenhos ainda estavam a meio caminho do progresso que soterraria o passado de cidade colonial do Rio de Janeiro. Isso porque, apesar de prever o transporte de dejetos sem contato manual e de forma mais higiênica (ao contrário dos “tigres”), os Desenhos indicavam uma solução provisória. Somente em 1864 os serviços de esgoto instalados pela The Rio de Janeiro Improvements começaram a funcionar. E não sem problemas, como ressaltou Jaime Benchimol.
Hoje, os conhecimentos médicos evoluíram, políticas públicas prometem saúde, limpeza e saneamento urbanos. Porém, na cidade que pretende sediar os Jogos Olímpicos de 2016, a população continua refém de epidemias como a dengue, cada vez mais agressiva. Os “tigres” foram extintos, mas persistem os mosquitos.

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