Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O instante eterno. Aprenda a usar os recursos da Semiologia para analisar uma fotografia em classe

Por Rosane Pavam
Boris Kosoy contesta a neutralidade fotográfica e expõe a manipulação histórica de imagens fugazes

A originalidade de um pensador como Boris Kossoy tem sido a de transformar a fotografia em assunto relevante para os estudos de história. Isso sem contar sua constatação, de repercussão extraordinária, segundo a qual a fotografia foi inventada no Brasil, em 1833, pelo viajante francês Hércules Florence. Em 1984, Kossoy ganhou da França a distinção de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, pelo conjunto da obra. Agora que tem um novo livro editado, este pesquisador paulista oferece um paradoxo ao pensamento sobre o tema. Em Os Tempos da Fotografia – O Efêmero e o Perpétuo (Atelié Editorial), ele afirma que as fotos funcionam como espelhos nos quais as memórias são guardadas. Mas os espelhos não refletem as imagens por um tempo fugaz?
Não este espelho, diz ele no livro em que são editadas palestras e conferências, o último de uma trilogia iniciada em 1999. O que parece ligeiro em uma fotografia revela-se, com o tempo, o patrimônio de uma cultura. Doutor em Ciências pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo que também atuou como fotógrafo, Kossoy crê que o historiador deve aprender a ver, nas fotos preocupadas em registrar o instante, sua porção de eternidade.
Apesar do intuito de retratar um momento, a fotografia guarda para sempre indícios da sociedade que a produziu. Essa crença de que se devem observar tais instantes com verdadeiro interesse historiográfico remete à escola dos Annales, criada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929 como contraponto ao pensamento positivista do século XIX. Kossoy raciocina como os franceses e como um italiano que os sucedeu, o historiador Carlo Ginzburg. A história, para esses pensadores, é feita das grandezas de coisas miúdas, observadas fora do circuito da política e dos donos do poder. Interpretar certos aspectos da vida cotidiana a partir daqueles que a experimentaram anonimamente constitui uma ação de resistência.
Aos 66 anos, autor do Dicionário de Fotógrafos e do Ofício Fotográfico no Brasil (1840-1910), o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP trabalha a partir dos indícios reivindicados por Ginzburg. Seguindo as lições do pensador italiano, Kossoy crê que os vestígios devem ser perseguidos, à moda do que faria Sherlock Holmes, até que a verdade, ou a possibilidade dela, sugerida por uma foto possa ser obtida.
Um vestígio é, por exemplo, o outdoor pendurado em um tapume do Largo do Arouche, no qual se oferece um miraculoso pó azul para matar baratas, preservado ao futuro em uma fotografia tirada em 1942 por Hildegard Rosenthal (1913-1990). Na imagem dessa autora nascida em Zurique, importará mais a cena simpática de um florista de jaleco branco e boné vendendo um buquê a uma mulher ou a série de outros vendedores de jaleco às suas costas, trabalhando sob um outro outdoor, o do filme Pérfida, com a “atriz número 1” Bette Davis? Um historiador terá muito que considerar sobre o tempo em questão ao analisar os detalhes da cena. Na foto repousam vestígios da cidade esquecida, de sua contraditória polidez.
O que Kossoy pretende fazer, então, é ouvir os anônimos da história, porque com eles estaria a verdade escondida do universo fotográfico. Hildegard Rosenthal era uma espécie de autoridade invisível neste mundo de espelhos quando o crítico Walter Zanini a redescobriu, em 1974. Kossoy quer colocar à luz muitos fotógrafos como ela. Anseia pelo ressurgimento de autores sem assinatura que teriam construído um padrão imagético para o Brasil. Eles seriam capazes de nos contar sobre o tempo que passa, diz Kossoy, citando o historiador marxista Eric Hobsbawm.
Para Kossoy, trata-se também de dessacralizar a neutralidade fotográfica como a entendiam, ou entendem, os cientificistas, responsáveis por transformá-la, às vezes, em documento tedioso. A fotografia não contém toda a verdade, sustenta. Ela é uma representação e pode, por conta dessa característica, ser manipulada por quem dela se servir. Aconteceu em 1871, durante a guerra franco-prussiana, de a fotografia ter encontrado um emprego pioneiro enquanto instrumento de identificação. Retratados durante o breve período de resistência, os defensores da Comuna de Paris foram identificados pela polícia graças a montagens fotográficas. Com o tempo, as atrocidades pelas quais responderam com a morte revelaram-se falsificações. “Para tanto teriam sido empregadas, na elaboração das montagens, fotografias de indivíduos tiradas anteriormente ao evento”, escreve Kossoy. “Essa guerra inaugura, pois, diferentes usos do testemunho fotográfico enquanto evidência documental.”

À primeira vista, é difícil crer que estejam sorrindo, depois da derrota em um episódio do que ficou conhecido como a Intentona Comunista, os militares que, em 1935, dão-se os braços na direção da câmera anônima. Kossoy explica que a foto foi tirada na tarde de 27 de novembro, por ocasião da rendição desses rebeldes. A imagem os mostra caminhando na Praia Vermelha em direção aos veículos que os levariam à prisão. “Esta manifestação de alegria, tal como se acha registrada na foto, causou indignação”, escreve. Foi publicada nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. A Polícia Militar escreveu, sobre os oficiais revoltosos, que eram “cínicos, feras, criminosos”, já que sorriam depois de terem “sacrificado brutalmente vidas moças e felizes”. Estávamos a dois anos da instauração do Estado Novo e as circunstâncias que cercam a obtenção da foto surgem insuficientemente explicadas.
As tramas da criação fotográfica têm muito a dizer a um historiador. Kossoy chama o que faz de arqueologia das imagens. Por meio de vestígios, do paradigma indiciário criado por Carlo Ginzburg, ele chega a uma resposta histórica para a fotografia solitária. Crê em um significado contextual para toda foto. Tanto que repreende com algum inconformismo o uso livre que as agências fotográficas fazem das imagens de arquivo para fins estranhos à sua concepção. Para ele, são “geladeiras da memória” onde é operada a morte do tempo histórico da criação e onde se dá sua ressurreição para diferentes contextos, numa reciclagem do tempo que ele classifica como insólita.
Mas o que pensar diante de imagens que transcendam o papel documental? Quando Claude Lévi-Strauss apresenta, em Saudades de São Paulo, parelhas de bois puxando redes na Praia Grande, não coloca em primeiro plano a inspiração poética baseada no uso do espaço e da luz? A foto diz por si, livre da necessidade de acesso às palavras contextuais do etnólogo que a produziu. O mesmo se dá em uma foto de Carlos Moreira contida na exposição Eu Olhei Tanto, na qual duas crianças parecem acenar ao navio no Porto de Santos. Moreira informa que as personagens retratadas não acenavam, de fato, no instante em que a foto se deu, o que provaria sua convicção de que a realidade de uma imagem é criada inteiramente pelo fotógrafo. As fotos de Moreira, como aquelas dos grandes autores, talvez rompam a barreira do tempo e, sem a necessidade de expor vestígios, mostrem-se pelo que singularmente representam. O que dizer das obras que respondem de forma direta à criação de um artista original?



Edição. 21. 09/11/2007

Acesso: 22/01/2009

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