Artigo sobre a Guerra do Paraguai retirado do blog Portal de História da professora Cris Prata.
ARTIGO - Guerra contra o Paraguai
Guerra contra o Paraguai
Por Mário Maestri em 17/05/2010
A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história brasileira da segunda metade do século XIX. As ações militares iniciaram-se em 12 de outubro de 1864, com a invasão brasileira do Uruguai, e concluíram-se em 1 de março de 1870, com a morte de Francisco Solano López, em Cerro Corá, no interior paraguaio.
Dos cento e quarenta mil soldados brasileiros convocados para o confronto, cinqüenta mil teriam morrido nos combates ou devido a ferimentos e doenças. O financiamento do enorme esforço militar comprometeu por mais de uma década as já frágeis finanças brasileiras.
A guerra tencionou política, social e economicamente o Brasil, desvelando o profundo anacronismo do Estado imperial escravista, despreparado e inadaptado para um esforço militar nacional. As conseqüências políticas do conflito foram profundas.
Durante a guerra, a luta abolicionista, principal questão política e social nacional, imobilizou-se sob a retórica da união diante do inimigo externo. Liberais e conservadores apoiaram uma intervenção rejeitada pelas classes subalternizadas, sem que qualquer força política nacional se opusesse a ela.
Narrativas apologéticas
As primeiras narrativas de vocação historiográfica sobre o conflito foram construídas após sua conclusão, nos últimos anos do Império. O golpe republicano de 1889 deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, principal interessada na consolidação dessas leituras apologéticas.
Esses trabalhos pioneiros foram sobretudo obra de oficiais combatentes. Eles construíram-se através da seleção e organização dos discursos apologéticos desenvolvidos pelo Estado e pelas elites imperiais durante o confronto.
As leituras apologéticas imperiais foram ampliadas após 1889. As forças armadas republicanas elevaram à situação de figuras paradigmáticas oficiais monárquicos – Caxias, Osório, Tamandaré – que intervieram com destaque no conflito, o mais importante jamais combatido pelo Estado brasileiro.
Para apoiar a idéia de que a intervenção militar constituiu uma reação ao ataque dos territórios brasileiros, esses relatos propuseram comumente como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, e não a intervenção brasileira, um mês antes, contra o governo constitucional uruguaio, apoiado pelo Paraguai.
Apologia militar
A historiografia nacional-patriótica brasileira propôs que a guerra fosse contra a ditadura deSolano López, e não contra o povo paraguaio. Mesmo se o Império e a Argentina tenham anexado parcelas dos territórios paraguaios, transformando o país em uma verdadeira republiqueta, dizimando literalmente sua população – autores estimam redução de até 69% da população paraguaia.
As narrativas historiográficas áulicas defrontaram-se com grave paradoxo. Como explicar o imenso esforço militar, as baixas multitudinárias e os mais de cinco anos necessários para vergar, em aliança com a Argentina e o Uruguai, uma nação de importância regional menor.
Em geral, explicou-se a paradoxal resistência como resultado de preparação militar prévia e do fanatismo guarani, promovidos por Solano López. A indiscutível marcialidade paraguaia prosseguiu como espécie de Esfinge exigindo decifração e dificultando que a guerra galvanizasse o imaginário patriótico brasileiro.
Nos anos 1930, a historiografia paraguaia autonomizou-se das narrativas das nações vencedoras, relendo os sucessos em geral num sentido patriótico-nacionalista. Na década de 60 e 70, narrativas historiográficas de inspiração latino-americanista propuseram nova ótica analítica.
Negócio genocida
Em 1968, León Pomer lançou na Argentina La guerra del Paraguay: um gran negócio, e em 1979, Júlio José Chiavenato publicou no Brasil Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. Esses trabalhos criticavam duramente a intervenção e ação da Tríplice Aliança.
Em geral, esse revisionismo apresentou a guerra como ação imperialista e genocida apoiada pelos ingleses e explicou a resistência paraguaia a partir de pretenso caráter modernizador do Estado lopizta. Destacou também a importância dos cativos libertados para lutarem nas tropas brasileiras.
Apesar dos importantes lapsos factuais e interpretativos, empreendia-se tentativa de análise das formações sociais envolvidas na guerra e de crítica geral da historiografia patriótico-imperialista. Procurava-se narrar os acontecimentos desde a ótica das populações envolvidas na guerra fratricida, e não das classes dominantes.
Genocídio americano: a Guerra do Paraguai obteve grande sucesso e influenciou o imaginário histórico brasileiro porque galvanizou a difusa memória do rosário de horrores que fora a guerra, até então semi-soterrado pelo discurso patriótico. O livro constituiu posicionamento contra a ditadura militar, durante a qual foi publicado.
A queda do muro
Em fins dos anos 1980, a vitória da contra-revolução liberal aprofundou poderosamente a hegemonia mundial do capitalismo, ensejando correspondente recuo das representações ideológico-culturais que se apoiavam no mundo do trabalho e procuravam interpretar o passado a partir de sua ótica.
No campo historiográfico, decretou-se o fim da história como ciência e da interpretação essencial do passado para compreensão e transformação do presente. A história da "vida privada", do "imaginário", do "singular", do "exótico", etc. recuou os esforços analítico-interpretativos sistemáticos do passado.
A rejeição das "narrativas totalizantes" valorizou a proposta das novas histórias política e cultural que terminou restaurando as velhas interpretações idealistas e subjetivistas do passado. A história voltou a ser lida prioritariamente como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais, como produto de determinações ideológico-culturais.
No relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas críticas do revisionismo dos anos 1960-70, definido como autoritário, populista, etc., empreenderam a restauração das grandes propostas interpretativas nacional-patrióticas imperiais e republicanas.
Maldita guerra
O livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, lançado pela Companhia das Letras, por sua qualidade, excelência e erudição, constitui exemplo paradigmático do assinalado restauro historiográfico.
Originalmente tese de doutoramento, esse extenso trabalho – quase quinhentas páginas de texto -, critica explicitamente o revisionismo paraguaio e latino-americanistas, propondo realizar nova e mais equilibrada leitura dos fatos. A grande intimidade do autor com o tema e com a região do confronto explicita-se na valiosa revisão bibliográfica e documental que apresenta, transformando seu estudo em obra de referência sobre esse domínio historiográfico.
Nos anos 1960, a historiografia latino-americanista avançara o conhecimento historiográfico ao ressaltar a necessidade da elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do Paraguai, em especial, mesmo se fracassara na resolução da equação que propunha. Efetivamente, uma das singularidade do conflito foi antepor três grandes nações – Argentina, Brasil e Paraguai – organizadas a partir de formas de produção e de formações sociais divergentes.
Nos anos 1860, na Argentina imperava o trabalho livre, enquanto no Brasil dominava a escravidão. Portanto, a Argentina e o Brasil eram organizados por modos de produção díspares, apesar de igualmente assentados nas trocas mercantis e na propriedade privada dos meios de produção. No Paraguai, o Estado detinha grande parte da produção e da propriedade. Francisco Doratioto lembra que o "Estado guarani" era "dono" "de quase 90% do território nacional", controlando "praticamente" uns "80% do comércio interno e externo".
Nação guarani
Mesmo assim, o autor – que utiliza as locuções "país guarani" e "nação guarani" como sinônimos de Paraguai -, jamais discute as conseqüências dessa formação sócio-econômica singular para uma população guarani com profundas raízes camponesas, comunitárias e missioneiras. Nacionalidade que desbordava as fronteiras paraguaias.
Francisco Doratioto empreende minuciosa e elucidativa análise política, diplomática e militar dos sucessos. Porém, não contextualiza as sociedades em questão, procedendo verdadeira homogeneização das formações sociais envolvidas no confronto.
Falta de contextualização histórica que termina resultando por exemplo no uso anacrônico de categorias como "povo", "cidadão", "opinião pública", etc. para a formação social escravista brasileira, na qual grande parte da população encontrava-se total ou parcialmente, nos fatos ou legalmente, à margem da cidadania.
A abordagem essencialmente política dos fenômenos impossibilita explicação essencial da belicosidade paraguaia e letargia brasileira, responsáveis pela perpetuação do conflito. O que leva o autor a propor a tenacidade guarani como produto da fanatização e controle policial. "Apesar dessa situação, quase não havia deserções nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror imposto por Solano López, que estendia a punição a familiares e companheiros do desertor."
Marcialidade servil
A explicação da marcialidade como produto da fanatização e da ação policial não se coaduna com uma nação com Estado, exército e meios de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de soldados tiranizados. Essas teses não explicam a rearticulação da resistência por Solano López, nos sertões paraguaios, após ter perdido a capital e o controle do aparelho estatal. Foram os exércitos brasileiros, argentinos e uruguaios que conheceram deserções ininterruptas e relevantes.
Francisco Doratioto deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade de Solano López, sobre quem lança a responsabilidade total da guerra. Isso, apesar de apresentar corretamente o confronto como tendencialmente inevitável, devido à procura da nação guarani de maior espaço regional e à negativa dos governos brasileiro e argentino de concedê-lo.
A personalização da história empreendida em Maldita guerra, por Franciso Doratioro, resulta no elogio das apologética das lideranças da Tríplice Aliança – Pedro II, Mitre, Caxias, Osório, etc. -, e na diabolização de Solano López, identificado a Hitler, ingênua personificação moderna da violência social na história.
Doratioto propõe como "identidade entre os dois ditadores" o fato de usarem jovens e velhos em desesperada resistência que teria comprometido seus países. A aproximação é anacrônica e esquece que foram os objetivos e práticas que desqualificaram o nazismo, e não a resistência inexorável, com jovens e velhos armados, utilizada licitamente pela população soviética contra o avanço fascistas.
Negros imprestáveis
Em geral, a retórica desabonadora estende-se às elites, aos oficias e aos soldados paraguaios, apresentados dedicados sistematicamente ao massacre, ao estupro e ao roubo, ainda que se convenha que, em certos momentos, os soldados aliados procedessem de igual modo.
A narrativa termina sugerindo ter constituído o conflito um choque entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal, e o Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado, uma outra grande tese apologética brasileira, antes, durante e após a guerra.
No mesmo sentido, jamais se discute a possibilidade da inesperada duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre um Estado escravista e uma nação de homens livres, desequilíbrio superado apenas pela desproporção de recursos entre o Brasil e o Paraguai.
A importante determinação dos combates pela essência escravista do Estado brasileiro, foi percebida por Caxias. O velho verdugo de cativos referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar dos libertos, "homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, que se consideram ainda escravos [...]".
Servidão e liberdade
Apreciação compartida pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara, que explicou o fracasso de assalto à posição paraguaia por "nossos soldados de infantaria" serem "os negros mais infames deste mundo, que chegam a ter medo até do inimigo que foge".
Esqueciam os oficiais escravistas que os negros pusilânimes, no Paraguai, sob a bandeira do Império, tinham sido os mais valorosos soldados de Artigas, no Uruguai, sob a bandeira da luta pela liberdade, décadas antes.
Não enfrentando as questões estruturais subjacentes ao conflito, a narrativa termina assumindo tom claramente nacional-patriótico, como quando propõe que os verdadeiros heróis aliados seriam "os [combatentes] que viveram" nas duras condições de Tuiuti, "durante dois anos, sem desertar ou pretextar doença".
Inaceitável julgamento de valor sobre os atos dos milhares de soldados brasileiros, argentinos e uruguaios que tiveram a sabedoria de obedecer ao sábio preceito plebeu que, se "Deus é grande, o mato é maior", escafedendo-se de uma guerra das elites abominada pelas populações dos subalternizadas.
Protagonistas ausentes
Restringido à descrição a uma indiscutivelmente rica e valiosa narrativa política, diplomática e militar dos fatos, explicando as suas origens e dinâmicas a partir sobretudo da ação de protagonistas ilustres, Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, jamais se debruça efetivamente sobre os grandes protagonistas dos acontecimentos estudados.
Portanto, permanece a necessidade de análise que explique o sentido e as razões profundas da indiscutível adesão da população paraguaia a Solano López, durante a ofensiva na Argentina e no Brasil e, sobretudo, quando da defesa dos territórios nacionais guaranis invadidos pelas tropas brasileiras e argentinas.
Em lugar da explicação da ação das massas na história a partir da intervenção de personagens providenciais, impõe-se o entendimento da gênese de lideranças carismáticas, por mais exóticas, contraditória e desalinhadas que sejam, como expressões, diretas ou oblíquas, de forças e interesses sociais profundos.
A análise estrutural das condições de vida, objetivos e aspirações das classes populares e servis brasileiras, associada ao estudo da realidade que conheceram sob a bandeira do Império, contribuirá para que finalmente se revele, segredos que a guerra contra o Paraguai teima em esconder.
Guerra contra o Paraguai
Por Mário Maestri em 17/05/2010
A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história brasileira da segunda metade do século XIX. As ações militares iniciaram-se em 12 de outubro de 1864, com a invasão brasileira do Uruguai, e concluíram-se em 1 de março de 1870, com a morte de Francisco Solano López, em Cerro Corá, no interior paraguaio.
Dos cento e quarenta mil soldados brasileiros convocados para o confronto, cinqüenta mil teriam morrido nos combates ou devido a ferimentos e doenças. O financiamento do enorme esforço militar comprometeu por mais de uma década as já frágeis finanças brasileiras.
A guerra tencionou política, social e economicamente o Brasil, desvelando o profundo anacronismo do Estado imperial escravista, despreparado e inadaptado para um esforço militar nacional. As conseqüências políticas do conflito foram profundas.
Durante a guerra, a luta abolicionista, principal questão política e social nacional, imobilizou-se sob a retórica da união diante do inimigo externo. Liberais e conservadores apoiaram uma intervenção rejeitada pelas classes subalternizadas, sem que qualquer força política nacional se opusesse a ela.
Narrativas apologéticas
As primeiras narrativas de vocação historiográfica sobre o conflito foram construídas após sua conclusão, nos últimos anos do Império. O golpe republicano de 1889 deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, principal interessada na consolidação dessas leituras apologéticas.
Esses trabalhos pioneiros foram sobretudo obra de oficiais combatentes. Eles construíram-se através da seleção e organização dos discursos apologéticos desenvolvidos pelo Estado e pelas elites imperiais durante o confronto.
As leituras apologéticas imperiais foram ampliadas após 1889. As forças armadas republicanas elevaram à situação de figuras paradigmáticas oficiais monárquicos – Caxias, Osório, Tamandaré – que intervieram com destaque no conflito, o mais importante jamais combatido pelo Estado brasileiro.
Para apoiar a idéia de que a intervenção militar constituiu uma reação ao ataque dos territórios brasileiros, esses relatos propuseram comumente como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, e não a intervenção brasileira, um mês antes, contra o governo constitucional uruguaio, apoiado pelo Paraguai.
Apologia militar
A historiografia nacional-patriótica brasileira propôs que a guerra fosse contra a ditadura deSolano López, e não contra o povo paraguaio. Mesmo se o Império e a Argentina tenham anexado parcelas dos territórios paraguaios, transformando o país em uma verdadeira republiqueta, dizimando literalmente sua população – autores estimam redução de até 69% da população paraguaia.
As narrativas historiográficas áulicas defrontaram-se com grave paradoxo. Como explicar o imenso esforço militar, as baixas multitudinárias e os mais de cinco anos necessários para vergar, em aliança com a Argentina e o Uruguai, uma nação de importância regional menor.
Em geral, explicou-se a paradoxal resistência como resultado de preparação militar prévia e do fanatismo guarani, promovidos por Solano López. A indiscutível marcialidade paraguaia prosseguiu como espécie de Esfinge exigindo decifração e dificultando que a guerra galvanizasse o imaginário patriótico brasileiro.
Nos anos 1930, a historiografia paraguaia autonomizou-se das narrativas das nações vencedoras, relendo os sucessos em geral num sentido patriótico-nacionalista. Na década de 60 e 70, narrativas historiográficas de inspiração latino-americanista propuseram nova ótica analítica.
Negócio genocida
Em 1968, León Pomer lançou na Argentina La guerra del Paraguay: um gran negócio, e em 1979, Júlio José Chiavenato publicou no Brasil Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. Esses trabalhos criticavam duramente a intervenção e ação da Tríplice Aliança.
Em geral, esse revisionismo apresentou a guerra como ação imperialista e genocida apoiada pelos ingleses e explicou a resistência paraguaia a partir de pretenso caráter modernizador do Estado lopizta. Destacou também a importância dos cativos libertados para lutarem nas tropas brasileiras.
Apesar dos importantes lapsos factuais e interpretativos, empreendia-se tentativa de análise das formações sociais envolvidas na guerra e de crítica geral da historiografia patriótico-imperialista. Procurava-se narrar os acontecimentos desde a ótica das populações envolvidas na guerra fratricida, e não das classes dominantes.
Genocídio americano: a Guerra do Paraguai obteve grande sucesso e influenciou o imaginário histórico brasileiro porque galvanizou a difusa memória do rosário de horrores que fora a guerra, até então semi-soterrado pelo discurso patriótico. O livro constituiu posicionamento contra a ditadura militar, durante a qual foi publicado.
A queda do muro
Em fins dos anos 1980, a vitória da contra-revolução liberal aprofundou poderosamente a hegemonia mundial do capitalismo, ensejando correspondente recuo das representações ideológico-culturais que se apoiavam no mundo do trabalho e procuravam interpretar o passado a partir de sua ótica.
No campo historiográfico, decretou-se o fim da história como ciência e da interpretação essencial do passado para compreensão e transformação do presente. A história da "vida privada", do "imaginário", do "singular", do "exótico", etc. recuou os esforços analítico-interpretativos sistemáticos do passado.
A rejeição das "narrativas totalizantes" valorizou a proposta das novas histórias política e cultural que terminou restaurando as velhas interpretações idealistas e subjetivistas do passado. A história voltou a ser lida prioritariamente como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais, como produto de determinações ideológico-culturais.
No relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas críticas do revisionismo dos anos 1960-70, definido como autoritário, populista, etc., empreenderam a restauração das grandes propostas interpretativas nacional-patrióticas imperiais e republicanas.
Maldita guerra
O livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, lançado pela Companhia das Letras, por sua qualidade, excelência e erudição, constitui exemplo paradigmático do assinalado restauro historiográfico.
Originalmente tese de doutoramento, esse extenso trabalho – quase quinhentas páginas de texto -, critica explicitamente o revisionismo paraguaio e latino-americanistas, propondo realizar nova e mais equilibrada leitura dos fatos. A grande intimidade do autor com o tema e com a região do confronto explicita-se na valiosa revisão bibliográfica e documental que apresenta, transformando seu estudo em obra de referência sobre esse domínio historiográfico.
Nos anos 1960, a historiografia latino-americanista avançara o conhecimento historiográfico ao ressaltar a necessidade da elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do Paraguai, em especial, mesmo se fracassara na resolução da equação que propunha. Efetivamente, uma das singularidade do conflito foi antepor três grandes nações – Argentina, Brasil e Paraguai – organizadas a partir de formas de produção e de formações sociais divergentes.
Nos anos 1860, na Argentina imperava o trabalho livre, enquanto no Brasil dominava a escravidão. Portanto, a Argentina e o Brasil eram organizados por modos de produção díspares, apesar de igualmente assentados nas trocas mercantis e na propriedade privada dos meios de produção. No Paraguai, o Estado detinha grande parte da produção e da propriedade. Francisco Doratioto lembra que o "Estado guarani" era "dono" "de quase 90% do território nacional", controlando "praticamente" uns "80% do comércio interno e externo".
Nação guarani
Mesmo assim, o autor – que utiliza as locuções "país guarani" e "nação guarani" como sinônimos de Paraguai -, jamais discute as conseqüências dessa formação sócio-econômica singular para uma população guarani com profundas raízes camponesas, comunitárias e missioneiras. Nacionalidade que desbordava as fronteiras paraguaias.
Francisco Doratioto empreende minuciosa e elucidativa análise política, diplomática e militar dos sucessos. Porém, não contextualiza as sociedades em questão, procedendo verdadeira homogeneização das formações sociais envolvidas no confronto.
Falta de contextualização histórica que termina resultando por exemplo no uso anacrônico de categorias como "povo", "cidadão", "opinião pública", etc. para a formação social escravista brasileira, na qual grande parte da população encontrava-se total ou parcialmente, nos fatos ou legalmente, à margem da cidadania.
A abordagem essencialmente política dos fenômenos impossibilita explicação essencial da belicosidade paraguaia e letargia brasileira, responsáveis pela perpetuação do conflito. O que leva o autor a propor a tenacidade guarani como produto da fanatização e controle policial. "Apesar dessa situação, quase não havia deserções nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror imposto por Solano López, que estendia a punição a familiares e companheiros do desertor."
Marcialidade servil
A explicação da marcialidade como produto da fanatização e da ação policial não se coaduna com uma nação com Estado, exército e meios de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de soldados tiranizados. Essas teses não explicam a rearticulação da resistência por Solano López, nos sertões paraguaios, após ter perdido a capital e o controle do aparelho estatal. Foram os exércitos brasileiros, argentinos e uruguaios que conheceram deserções ininterruptas e relevantes.
Francisco Doratioto deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade de Solano López, sobre quem lança a responsabilidade total da guerra. Isso, apesar de apresentar corretamente o confronto como tendencialmente inevitável, devido à procura da nação guarani de maior espaço regional e à negativa dos governos brasileiro e argentino de concedê-lo.
A personalização da história empreendida em Maldita guerra, por Franciso Doratioro, resulta no elogio das apologética das lideranças da Tríplice Aliança – Pedro II, Mitre, Caxias, Osório, etc. -, e na diabolização de Solano López, identificado a Hitler, ingênua personificação moderna da violência social na história.
Doratioto propõe como "identidade entre os dois ditadores" o fato de usarem jovens e velhos em desesperada resistência que teria comprometido seus países. A aproximação é anacrônica e esquece que foram os objetivos e práticas que desqualificaram o nazismo, e não a resistência inexorável, com jovens e velhos armados, utilizada licitamente pela população soviética contra o avanço fascistas.
Negros imprestáveis
Em geral, a retórica desabonadora estende-se às elites, aos oficias e aos soldados paraguaios, apresentados dedicados sistematicamente ao massacre, ao estupro e ao roubo, ainda que se convenha que, em certos momentos, os soldados aliados procedessem de igual modo.
A narrativa termina sugerindo ter constituído o conflito um choque entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal, e o Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado, uma outra grande tese apologética brasileira, antes, durante e após a guerra.
No mesmo sentido, jamais se discute a possibilidade da inesperada duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre um Estado escravista e uma nação de homens livres, desequilíbrio superado apenas pela desproporção de recursos entre o Brasil e o Paraguai.
A importante determinação dos combates pela essência escravista do Estado brasileiro, foi percebida por Caxias. O velho verdugo de cativos referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar dos libertos, "homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, que se consideram ainda escravos [...]".
Servidão e liberdade
Apreciação compartida pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara, que explicou o fracasso de assalto à posição paraguaia por "nossos soldados de infantaria" serem "os negros mais infames deste mundo, que chegam a ter medo até do inimigo que foge".
Esqueciam os oficiais escravistas que os negros pusilânimes, no Paraguai, sob a bandeira do Império, tinham sido os mais valorosos soldados de Artigas, no Uruguai, sob a bandeira da luta pela liberdade, décadas antes.
Não enfrentando as questões estruturais subjacentes ao conflito, a narrativa termina assumindo tom claramente nacional-patriótico, como quando propõe que os verdadeiros heróis aliados seriam "os [combatentes] que viveram" nas duras condições de Tuiuti, "durante dois anos, sem desertar ou pretextar doença".
Inaceitável julgamento de valor sobre os atos dos milhares de soldados brasileiros, argentinos e uruguaios que tiveram a sabedoria de obedecer ao sábio preceito plebeu que, se "Deus é grande, o mato é maior", escafedendo-se de uma guerra das elites abominada pelas populações dos subalternizadas.
Protagonistas ausentes
Restringido à descrição a uma indiscutivelmente rica e valiosa narrativa política, diplomática e militar dos fatos, explicando as suas origens e dinâmicas a partir sobretudo da ação de protagonistas ilustres, Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, jamais se debruça efetivamente sobre os grandes protagonistas dos acontecimentos estudados.
Portanto, permanece a necessidade de análise que explique o sentido e as razões profundas da indiscutível adesão da população paraguaia a Solano López, durante a ofensiva na Argentina e no Brasil e, sobretudo, quando da defesa dos territórios nacionais guaranis invadidos pelas tropas brasileiras e argentinas.
Em lugar da explicação da ação das massas na história a partir da intervenção de personagens providenciais, impõe-se o entendimento da gênese de lideranças carismáticas, por mais exóticas, contraditória e desalinhadas que sejam, como expressões, diretas ou oblíquas, de forças e interesses sociais profundos.
A análise estrutural das condições de vida, objetivos e aspirações das classes populares e servis brasileiras, associada ao estudo da realidade que conheceram sob a bandeira do Império, contribuirá para que finalmente se revele, segredos que a guerra contra o Paraguai teima em esconder.
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Texto publicado em janeiro de 2003 na revista eletrônica www.consciencia.net.
*Mário Maestri, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: maestri@via-rs.net
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