Mitologia e História.
A princípio, duas realidades que poderiam ser excludentes uma à outra, dadas suas características tão diversas, já que uma tem base em uma tradição religiosa e fantástica e a outra, um alicerce calcado em métodos e elementos pretensamente científicos.No entanto, falar da Antigüidade histórica é tratar da reconstrução de um período com base em indícios, que podem ter origem em elementos arqueológicos, em ponderações científicas sobre a evolução do ser humano e do meio ambiente e até nas tradições orais, passadas de geração a geração, e que, em algum momento, foram perpetradas em registros escritos.Com a chegada aos cinemas da superprodução Tróia, do diretor Wolfgang Petersen, surge sempre a curiosidade de se saber o que é real e o que é imaginário em uma história como a da Guerra de Tróia. Há realidade no que contou Homero, o grande autor grego que teria vivido por volta do século VIII a.C. e a quem é creditada a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisséia, principais obras que relatam o drama troiano? Ou trata-se simplesmente de um relato criativo de tradições orais que remontam séculos?Homero existiu?A própria existência de Homero é posta em dúvida em alguns momentos. Além disso, caso o autor grego tenha escrito mesmo os dois poemas, relatando a tal Guerra de Tróia, o teria feito cerca de quatrocentos anos depois de o fato ter realmente ocorrido, segundo a tradição, em uma época em que a escrita com base no alfabeto ainda não era dominada pela civilização que habitava o Mediterrâneo de então. Infere-se, portanto, que toda a história teria sido passada oralmente, de geração a geração, com todas as influências que esse tipo de transmissão do conhecimento tende a sofrer.Tendo um fundo de realidade ou não, a verdade é que a obra de Homero, inserida no chamado Ciclo Troiano da tradição antiga, exerceu grande influência sobre a formação do que hoje conhecemos como a Cultura Ocidental, cujo berço está justamente na civilização grega antiga. Sobre os textos de Homero foi construída toda uma tradição que viria a se tornar a base da formação da tradição grega. Platão, um dos maiores filósofos dessa tradição, que teria vivido mais de trezentos anos depois de Homero, reconhecia a relevância do autor."A importância de Homero na literatura grega é enorme. Ele é considerado o primeiro poeta, o primeiro aedo (poeta, em grego). Platão, séculos depois de Homero, ainda dizia que Homero educou a Grécia. Quer dizer, a influência da tradição oral Homérica foi muito forte em toda a cultura grega. Sem dúvida. Você vai estudar a épica grega, você começa por Homero. Você vai estudar a tragédia grega, você começa relacionando com Homero. Você vai estudar medicina grega, você começa pensando naqueles detalhes de onde iam as flechas na guerra, segundo Homero. Se você for estudar retórica, você vai pegar os discursos de Homero", analisa a professora de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), Filomena Hirata.Porém o purismo histórico, calcado sempre em métodos os mais científicos possíveis, impede que aquilo que foi escrito por Homero seja aceito com uma real descrição de fatos que teriam ocorrido em Tróia.Ciência com base em HomeroNo entanto, alguns indícios, principalmente arqueológicos, abriram portas para que as histórias contadas na Ilíada e na Odisséia possam ser compreendidas como possuidoras de um fundo de verdade."Os poemas de Homero, a Ilíada e a Odisséia são narrativas tradicionais que reportam a memória desse povo. Esses poemas têm a função social de reunir o saber, os padrões de comportamento, as informações que interessam à vida em todos os sentidos. Heinrich Schliemann, no século XIX, estava convencido de que estas histórias tinham um fundo verdadeiro no sentido histórico. E ele foi escavar em Troada, que é o lugar em que supostamente se passaram os combates, que coincide com a atual Turquia. Seguindo a reconstituição que Homero fez da descrição de batalhas, do palácio de Príamo (rei de Tróia durante a guerra, segundo a Ilíada), descobriu várias cidades soterradas. Uma delas ele identificou como sendo a Tróia de Príamo. Depois disso, ele fez escavações em Micenas (na Grécia) e recuperou o palácio de Micenas. Descobriu tumba e tesouro que ele atribuiu a Agamenon (rei de Micenas, chamado também de rei dos reis, líder dos aqueus - como eram chamados os gregos na Ilíada - na Guerra de Tróia, segundo Homero). Então, ele estava convencido de que havia descoberto a tumba de Agamenon, seus tesouros, a cidadela de Príamo. Os arqueólogos posteriores não tinham tanta certeza quanto à identificação dos pormenores. Mas, com isso se demonstrou que havia um fundo de verdade nessas lendas contadas pelos poemas", lembra o professor Jaa Torrano, de Literatura Grega da FFLCH-USP.Assim, Torrano avalia que a história se mistura à tradição relatada por Homero. "Tem um fundo histórico na guerra de Tróia. Teria havido uma cidade que foi saqueada. Teria havido uma coligação dos gregos continentais contra outro povo que vivia na Turquia. Tem um fundo de verdade, como se fosse um romance histórico. Os episódios são, provavelmente, criação do narrador, mas tem um pano de fundo verdadeiro."Vale lembrar que em suas escavações na atual Turquia, Schliemann encontrou dez cidades construídas umas sobre as outras, considerando que a sétima cidade mais antiga seria a Tróia de Príamo.A conclusão de Schiliemann de que teria comprovado a existência de Tróia por suas escavações é questionada, por exemplo, pelo historiador José Otávio Nogueira Guimarães, professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da UnB (Universidade de Brasília)."Schliemann vai dizer em um primeiro momento: `Está provado, Tróia existiu. Esses tesouros que foram encontrados aqui pertenciam à aristocracia troaiana, o que foi encontrado em Micenas pertencia aos heróis aqueus que vão lutar contra Tróia´... Mas, em seguida, essas descobertas de Schliemann também vão ser postas em questão... Porque a cidade onde teria sido encontrado o que se chama de tesouro troiano, objetos de ouro, a cidade mais rica, pelas datações arqueológicas remonta a 2.500 e 2.200 a.C., quer dizer, um período bem anterior àquele ao qual, segundo a tradição, teria se passado a guerra, no final do século XII a.C.... A cidade que pela data da tradição corresponderia à Tróia arqueológica seria a Tróia 7ª-A. Essa Tróia 7ª-A parecia ser uma cidade relativamente pobre e que, segundo os indícios arqueológicos, teria sido destruída por um terremoto e não por uma empreitada militar", explica Guimarães.E Guimarães completa: "Depois os historiadores vão tentar buscar outros tipos de fonte para tentar esclarecer o contexto da guerra. Há os arquivos ititas, que fazem referência a Kaia. Porque o Império Itita se localizava mais ou menos onde hoje é a Turquia. E Tróia é uma cidade do litoral norte da costa da Ásia Menor, o litoral turco, hoje, e que praticamente estaria sob o domínio Itita. Foram buscadas referências entre estes textos ititas e o mundo micênico, mas pouca coisa foi encontrada, quase nada, a não ser uma referência aos aquigauas, que seriam possivelmente os aqueus (gregos), mas nada que viesse a comprovar a história".Na mesma linha, vai a avaliação da professora Filomena Hirata. "A História acho que é uma coisa diferente. Dizer que a Guerra de Tróia, tal qual ela é relatada na Ilíada de Homero, foi o que aconteceu historicamente não é uma verdade. Não teria sido possível ter havido uma guerra nos moldes que Homero conta, um cerco a uma cidade que durou dez anos. Isso era impraticável" , diz. "O que havia eram muitas guerras, mas eram guerras rápidas, guerras para conseguir bens. Os gregos saíam atrás de metais preciosos, escravos. Mas eram guerras rápidas. Pode até ter havido em um dado momento uma guerra por causa de uma mulher, mas não nos moldes que conta Homero", acrescenta."Ainda que haja um sítio arqueológico escavado já há muito tempo - através dos trabalhos do alemão Schliemann, localizado em Tróia, que corresponderia hoje a uma região da Turquia -, ainda que haja uma possível identificação entre uma das cidades estudadas por Schliemann com aquilo que poderia ser a antiga Tróia, tudo isso é muito difícil de ser rigorosamente provado", avalia Filomena Hirata.Diferenças culturaisÉ importante ter em mente que o que hoje compreendemos como sendo mitologia - um grupo de crenças que formam a base religiosa da Grécia Antiga - era compreendido e analisado de outra forma àquela época. "Para os gregos, não havia essa distinção (entre História e Mitologia). Eles imaginavam que todos esses eventos tinham acontecido, consideravam esses heróis seus antepassados distantes. Então eles acreditavam na historicidade deles", diz André Malta Campos, professor de Grego Antigo da FFLHC-USP."Claro que hoje a gente vê de uma outra forma. E ficam tentando, os historiadores, os arqueólogos, querem ver em Homero o que pode ser um retrato do que de fato aconteceu. Não há como a gente saber com certeza. Há como sabermos que houve guerras em Tróia, várias destruições de Tróia, e a tendência é localizar a destruição dessa Tróia retratada por Homero no século XII a.C., entre as várias camadas arqueológicas que existem de Tróia, e tentar buscar em Homero elementos que retratem algum período da Grécia Antiga. Mas, na verdade, Homero é um miscelânea de elementos", afirma Campos.O que é certo é notar que, segundo as observações históricas, a prática do saque pelo uso da força, a partir da guerras como instrumento de conquista, era corriqueira em meios às civilizações antigas. Segundo o professor José Guimarães, hoje, acredita-se que se há algum núcleo histórico nos relatos de Homero isso está ligado a uma guerra de pilhagem que teria virado esse acontecimento grandioso pela imaginação poética."Guerras de pilhagem eram extremamente comuns nesse mundo. A guerra era um fato econômico. Você organiza excursões além mar para fazer escravos, saquear tesouros. Então a guerra de pilhagem era um exemplo corriqueiro nesse mundo Mediterrâneo no final do milênio antes de Cristo", diz o professor da UnB.Por outro lado, o professor Jacyntho Lins Brandão, de Língua e Literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), lembra a criação de instrumentos de observação que viriam a ser aplicados por historiadores para depurar indicações históricas a partir de relatos da tradição oral ou mesmo da Literatura e da arte.Brandão lembra as observações historiador grego Evêmero, do século IV a.C. Segundo o historiador - de cujo nome derivou o termo evemerismo (doutrina segundo a qual as personagens ou heróis mitológicos são seriam humanos divinizados após a morte, como definido no dicionário Aurélio) -, ao separar dos mitos aquilo que é fantasioso, chegaríamos a um fundo de verdade, a uma origem histórica.Jacyntho Brandão, explica que "se eu trabalhar uma tradição mitológica qualquer, e não só a grega, eu chego a um fundo de verdade que ela tem, desde que eu consiga identificar quais são os elemento de fabulação poética que estão sendo colocados em cima de um texto histórico. Vou dar um exemplo do Brasil para entender o que é isso. Nós temos aqui, na História do Brasil, Getúlio Vargas. Não temos dúvida nenhuma de que isso é História. Se a gente pegar um cordel do Nordeste, nós vamos encontrar algo assim: a chegada de Getúlio Vargas ao inferno. Quer dizer, se a gente não tivesse documento histórico sobre Getúlio Vargas, esse cordel - vamos pensar daqui a mil anos - é uma referência de que Getúlio Vargas existiu. Aí podemos pegar esse cordel, tirar o que é maravilhoso e então você encontra o resto de história ali"."O extraordinário em relação a Homero é que os gregos já ficavam discutindo: será que isso é verdade? Homero não estava na Guerra de Tróia, como é que ele podia saber o que aconteceu lá? Havia várias leituras de Homero, desde ele ser lido como um historiador durante a Antigüidade toda, até as críticas que pensavam que tudo ali era alegórico, então precisava ter uma hermenêutica para entender o sentido dos poemas, até pensar que tudo aquilo era mentira", afirma Brandão." No século XIX, quando (Heinrich) Schliemann resolve descobrir onde ficava Tróia, e usa os poemas de Homero para poder ver qual era a localização, ele vai lá para o lugar onde hoje é a Turquia, a partir das indicações de Homero, e descobre Tróia. Este é o dado, em princípio inacreditável, se não tivesse sido descoberto, que provocou uma série de reflexões sobre a poesia de Homero, de pensar que ali não há só poesia, de que mesmo esse material, recebendo uma tratamento poético, está guardando uma memória sim, uma memória histórica de tradição oral", analisa o professor da UFMG.A Mitologia presenteSupondo-se então que os poemas de Homero possuem um fundo de verdade - que seja um relato de uma tradição histórica passada de eventos e personagens, mais alegoricamente ou menos -, é interessante notar a presença dos mitos religiosos na ação. Os deuses do Olimpo e outras figuras fantásticas, descritos tão detalhadamente na tradição mitológica grega, estão presentes nas histórias da Ilíada e da Odisséia.Essas figuras mitológicas são atores nas obras de Homero. Interferem na trama e são afetados pelos efeitos produzidos durante a Guerra de Tróia. Até mesmo o principal herói da Ilíada, Aquiles, é um semideus, isto é, filho de uma deusa (Tétis) com um humano (Peleu)."Quando a gente está falando de mito, e daí vem a palavra grega mythos, o primeiro sentido do termo em grego é de discurso, narrativa. Inclusive o verbo que vem daí é o verbo normal antigo, em Homero, que significa falar, narrar. Então, numa primeira aproximação, mito é uma narrativa qualquer. A segunda coisa é que tipo de acesso a gente tem a isso, que chamamos de mitologia grega. Nós temos acesso só a partir do que foi escrito, e esse campo do mito, nesse contexto que é oral, que significa falar, dizer, contar, é uma coisa que simplesmente a gente não conhece: não havia gravador na época. Agora, quando a gente recebe essa mitologia escrita, recebe uma variedade muito grande de versões, então, dá uma impressão falsa quando se fala da mitologia grega, como se isso fosse um conjunto de textos oficiais que tem uma versão determinada. Seria mais interessante a gente pensar que nós temos não uma mitologia, propriamente, mas sim, temos mitografias. Nós temos vários registros escritos desse negócio indefinido que a gente não consegue saber dar o contorno direito, que seriam os mitos", avalia Brandão.EssênciaRetrato de parte de uma História antiga, colagem de mitos ou apenas uma obra literária. Seja como for classificado o legado de Homero, e todo o arcabouço cultural que se seguiu a ele a partir da tradição helênica, é certo inferir que tal produção foi de suma importância à formação de todo um arcabouço que deu base à sociedade ocidental.Desses fundamentos, valores e princípios que perduram até hoje foram desenvolvidos os fundamentos, valores e princípios atuais. Hoje, pode-se dizer que toda a humanidade é influenciada, direta ou indiretamente, por aquilo que foi legado daqueles primórdios históricos, literários, mitológicos. No entanto, permanece sempre a curiosidade natural do ser humano em relação a sua origem e a seu destino. Quem sabe, um dia, contaremos com tecnologia que reconstrua momentos passados e revele "as verdades".Como disse Chico Buarque em sua canção "Futuros Amantes", sobre o amor que pode "esperar em silêncio", no futuro: "Sábios em vão/Tentarão decifrar/O eco de antigas palavras/Fragmentos de cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de estranha civilização".
http://hitzblog.blogspot.com/2009/03/mitologia-e-historia-sobre-o-lancamento.html
A princípio, duas realidades que poderiam ser excludentes uma à outra, dadas suas características tão diversas, já que uma tem base em uma tradição religiosa e fantástica e a outra, um alicerce calcado em métodos e elementos pretensamente científicos.No entanto, falar da Antigüidade histórica é tratar da reconstrução de um período com base em indícios, que podem ter origem em elementos arqueológicos, em ponderações científicas sobre a evolução do ser humano e do meio ambiente e até nas tradições orais, passadas de geração a geração, e que, em algum momento, foram perpetradas em registros escritos.Com a chegada aos cinemas da superprodução Tróia, do diretor Wolfgang Petersen, surge sempre a curiosidade de se saber o que é real e o que é imaginário em uma história como a da Guerra de Tróia. Há realidade no que contou Homero, o grande autor grego que teria vivido por volta do século VIII a.C. e a quem é creditada a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisséia, principais obras que relatam o drama troiano? Ou trata-se simplesmente de um relato criativo de tradições orais que remontam séculos?Homero existiu?A própria existência de Homero é posta em dúvida em alguns momentos. Além disso, caso o autor grego tenha escrito mesmo os dois poemas, relatando a tal Guerra de Tróia, o teria feito cerca de quatrocentos anos depois de o fato ter realmente ocorrido, segundo a tradição, em uma época em que a escrita com base no alfabeto ainda não era dominada pela civilização que habitava o Mediterrâneo de então. Infere-se, portanto, que toda a história teria sido passada oralmente, de geração a geração, com todas as influências que esse tipo de transmissão do conhecimento tende a sofrer.Tendo um fundo de realidade ou não, a verdade é que a obra de Homero, inserida no chamado Ciclo Troiano da tradição antiga, exerceu grande influência sobre a formação do que hoje conhecemos como a Cultura Ocidental, cujo berço está justamente na civilização grega antiga. Sobre os textos de Homero foi construída toda uma tradição que viria a se tornar a base da formação da tradição grega. Platão, um dos maiores filósofos dessa tradição, que teria vivido mais de trezentos anos depois de Homero, reconhecia a relevância do autor."A importância de Homero na literatura grega é enorme. Ele é considerado o primeiro poeta, o primeiro aedo (poeta, em grego). Platão, séculos depois de Homero, ainda dizia que Homero educou a Grécia. Quer dizer, a influência da tradição oral Homérica foi muito forte em toda a cultura grega. Sem dúvida. Você vai estudar a épica grega, você começa por Homero. Você vai estudar a tragédia grega, você começa relacionando com Homero. Você vai estudar medicina grega, você começa pensando naqueles detalhes de onde iam as flechas na guerra, segundo Homero. Se você for estudar retórica, você vai pegar os discursos de Homero", analisa a professora de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), Filomena Hirata.Porém o purismo histórico, calcado sempre em métodos os mais científicos possíveis, impede que aquilo que foi escrito por Homero seja aceito com uma real descrição de fatos que teriam ocorrido em Tróia.Ciência com base em HomeroNo entanto, alguns indícios, principalmente arqueológicos, abriram portas para que as histórias contadas na Ilíada e na Odisséia possam ser compreendidas como possuidoras de um fundo de verdade."Os poemas de Homero, a Ilíada e a Odisséia são narrativas tradicionais que reportam a memória desse povo. Esses poemas têm a função social de reunir o saber, os padrões de comportamento, as informações que interessam à vida em todos os sentidos. Heinrich Schliemann, no século XIX, estava convencido de que estas histórias tinham um fundo verdadeiro no sentido histórico. E ele foi escavar em Troada, que é o lugar em que supostamente se passaram os combates, que coincide com a atual Turquia. Seguindo a reconstituição que Homero fez da descrição de batalhas, do palácio de Príamo (rei de Tróia durante a guerra, segundo a Ilíada), descobriu várias cidades soterradas. Uma delas ele identificou como sendo a Tróia de Príamo. Depois disso, ele fez escavações em Micenas (na Grécia) e recuperou o palácio de Micenas. Descobriu tumba e tesouro que ele atribuiu a Agamenon (rei de Micenas, chamado também de rei dos reis, líder dos aqueus - como eram chamados os gregos na Ilíada - na Guerra de Tróia, segundo Homero). Então, ele estava convencido de que havia descoberto a tumba de Agamenon, seus tesouros, a cidadela de Príamo. Os arqueólogos posteriores não tinham tanta certeza quanto à identificação dos pormenores. Mas, com isso se demonstrou que havia um fundo de verdade nessas lendas contadas pelos poemas", lembra o professor Jaa Torrano, de Literatura Grega da FFLCH-USP.Assim, Torrano avalia que a história se mistura à tradição relatada por Homero. "Tem um fundo histórico na guerra de Tróia. Teria havido uma cidade que foi saqueada. Teria havido uma coligação dos gregos continentais contra outro povo que vivia na Turquia. Tem um fundo de verdade, como se fosse um romance histórico. Os episódios são, provavelmente, criação do narrador, mas tem um pano de fundo verdadeiro."Vale lembrar que em suas escavações na atual Turquia, Schliemann encontrou dez cidades construídas umas sobre as outras, considerando que a sétima cidade mais antiga seria a Tróia de Príamo.A conclusão de Schiliemann de que teria comprovado a existência de Tróia por suas escavações é questionada, por exemplo, pelo historiador José Otávio Nogueira Guimarães, professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas da UnB (Universidade de Brasília)."Schliemann vai dizer em um primeiro momento: `Está provado, Tróia existiu. Esses tesouros que foram encontrados aqui pertenciam à aristocracia troaiana, o que foi encontrado em Micenas pertencia aos heróis aqueus que vão lutar contra Tróia´... Mas, em seguida, essas descobertas de Schliemann também vão ser postas em questão... Porque a cidade onde teria sido encontrado o que se chama de tesouro troiano, objetos de ouro, a cidade mais rica, pelas datações arqueológicas remonta a 2.500 e 2.200 a.C., quer dizer, um período bem anterior àquele ao qual, segundo a tradição, teria se passado a guerra, no final do século XII a.C.... A cidade que pela data da tradição corresponderia à Tróia arqueológica seria a Tróia 7ª-A. Essa Tróia 7ª-A parecia ser uma cidade relativamente pobre e que, segundo os indícios arqueológicos, teria sido destruída por um terremoto e não por uma empreitada militar", explica Guimarães.E Guimarães completa: "Depois os historiadores vão tentar buscar outros tipos de fonte para tentar esclarecer o contexto da guerra. Há os arquivos ititas, que fazem referência a Kaia. Porque o Império Itita se localizava mais ou menos onde hoje é a Turquia. E Tróia é uma cidade do litoral norte da costa da Ásia Menor, o litoral turco, hoje, e que praticamente estaria sob o domínio Itita. Foram buscadas referências entre estes textos ititas e o mundo micênico, mas pouca coisa foi encontrada, quase nada, a não ser uma referência aos aquigauas, que seriam possivelmente os aqueus (gregos), mas nada que viesse a comprovar a história".Na mesma linha, vai a avaliação da professora Filomena Hirata. "A História acho que é uma coisa diferente. Dizer que a Guerra de Tróia, tal qual ela é relatada na Ilíada de Homero, foi o que aconteceu historicamente não é uma verdade. Não teria sido possível ter havido uma guerra nos moldes que Homero conta, um cerco a uma cidade que durou dez anos. Isso era impraticável" , diz. "O que havia eram muitas guerras, mas eram guerras rápidas, guerras para conseguir bens. Os gregos saíam atrás de metais preciosos, escravos. Mas eram guerras rápidas. Pode até ter havido em um dado momento uma guerra por causa de uma mulher, mas não nos moldes que conta Homero", acrescenta."Ainda que haja um sítio arqueológico escavado já há muito tempo - através dos trabalhos do alemão Schliemann, localizado em Tróia, que corresponderia hoje a uma região da Turquia -, ainda que haja uma possível identificação entre uma das cidades estudadas por Schliemann com aquilo que poderia ser a antiga Tróia, tudo isso é muito difícil de ser rigorosamente provado", avalia Filomena Hirata.Diferenças culturaisÉ importante ter em mente que o que hoje compreendemos como sendo mitologia - um grupo de crenças que formam a base religiosa da Grécia Antiga - era compreendido e analisado de outra forma àquela época. "Para os gregos, não havia essa distinção (entre História e Mitologia). Eles imaginavam que todos esses eventos tinham acontecido, consideravam esses heróis seus antepassados distantes. Então eles acreditavam na historicidade deles", diz André Malta Campos, professor de Grego Antigo da FFLHC-USP."Claro que hoje a gente vê de uma outra forma. E ficam tentando, os historiadores, os arqueólogos, querem ver em Homero o que pode ser um retrato do que de fato aconteceu. Não há como a gente saber com certeza. Há como sabermos que houve guerras em Tróia, várias destruições de Tróia, e a tendência é localizar a destruição dessa Tróia retratada por Homero no século XII a.C., entre as várias camadas arqueológicas que existem de Tróia, e tentar buscar em Homero elementos que retratem algum período da Grécia Antiga. Mas, na verdade, Homero é um miscelânea de elementos", afirma Campos.O que é certo é notar que, segundo as observações históricas, a prática do saque pelo uso da força, a partir da guerras como instrumento de conquista, era corriqueira em meios às civilizações antigas. Segundo o professor José Guimarães, hoje, acredita-se que se há algum núcleo histórico nos relatos de Homero isso está ligado a uma guerra de pilhagem que teria virado esse acontecimento grandioso pela imaginação poética."Guerras de pilhagem eram extremamente comuns nesse mundo. A guerra era um fato econômico. Você organiza excursões além mar para fazer escravos, saquear tesouros. Então a guerra de pilhagem era um exemplo corriqueiro nesse mundo Mediterrâneo no final do milênio antes de Cristo", diz o professor da UnB.Por outro lado, o professor Jacyntho Lins Brandão, de Língua e Literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), lembra a criação de instrumentos de observação que viriam a ser aplicados por historiadores para depurar indicações históricas a partir de relatos da tradição oral ou mesmo da Literatura e da arte.Brandão lembra as observações historiador grego Evêmero, do século IV a.C. Segundo o historiador - de cujo nome derivou o termo evemerismo (doutrina segundo a qual as personagens ou heróis mitológicos são seriam humanos divinizados após a morte, como definido no dicionário Aurélio) -, ao separar dos mitos aquilo que é fantasioso, chegaríamos a um fundo de verdade, a uma origem histórica.Jacyntho Brandão, explica que "se eu trabalhar uma tradição mitológica qualquer, e não só a grega, eu chego a um fundo de verdade que ela tem, desde que eu consiga identificar quais são os elemento de fabulação poética que estão sendo colocados em cima de um texto histórico. Vou dar um exemplo do Brasil para entender o que é isso. Nós temos aqui, na História do Brasil, Getúlio Vargas. Não temos dúvida nenhuma de que isso é História. Se a gente pegar um cordel do Nordeste, nós vamos encontrar algo assim: a chegada de Getúlio Vargas ao inferno. Quer dizer, se a gente não tivesse documento histórico sobre Getúlio Vargas, esse cordel - vamos pensar daqui a mil anos - é uma referência de que Getúlio Vargas existiu. Aí podemos pegar esse cordel, tirar o que é maravilhoso e então você encontra o resto de história ali"."O extraordinário em relação a Homero é que os gregos já ficavam discutindo: será que isso é verdade? Homero não estava na Guerra de Tróia, como é que ele podia saber o que aconteceu lá? Havia várias leituras de Homero, desde ele ser lido como um historiador durante a Antigüidade toda, até as críticas que pensavam que tudo ali era alegórico, então precisava ter uma hermenêutica para entender o sentido dos poemas, até pensar que tudo aquilo era mentira", afirma Brandão." No século XIX, quando (Heinrich) Schliemann resolve descobrir onde ficava Tróia, e usa os poemas de Homero para poder ver qual era a localização, ele vai lá para o lugar onde hoje é a Turquia, a partir das indicações de Homero, e descobre Tróia. Este é o dado, em princípio inacreditável, se não tivesse sido descoberto, que provocou uma série de reflexões sobre a poesia de Homero, de pensar que ali não há só poesia, de que mesmo esse material, recebendo uma tratamento poético, está guardando uma memória sim, uma memória histórica de tradição oral", analisa o professor da UFMG.A Mitologia presenteSupondo-se então que os poemas de Homero possuem um fundo de verdade - que seja um relato de uma tradição histórica passada de eventos e personagens, mais alegoricamente ou menos -, é interessante notar a presença dos mitos religiosos na ação. Os deuses do Olimpo e outras figuras fantásticas, descritos tão detalhadamente na tradição mitológica grega, estão presentes nas histórias da Ilíada e da Odisséia.Essas figuras mitológicas são atores nas obras de Homero. Interferem na trama e são afetados pelos efeitos produzidos durante a Guerra de Tróia. Até mesmo o principal herói da Ilíada, Aquiles, é um semideus, isto é, filho de uma deusa (Tétis) com um humano (Peleu)."Quando a gente está falando de mito, e daí vem a palavra grega mythos, o primeiro sentido do termo em grego é de discurso, narrativa. Inclusive o verbo que vem daí é o verbo normal antigo, em Homero, que significa falar, narrar. Então, numa primeira aproximação, mito é uma narrativa qualquer. A segunda coisa é que tipo de acesso a gente tem a isso, que chamamos de mitologia grega. Nós temos acesso só a partir do que foi escrito, e esse campo do mito, nesse contexto que é oral, que significa falar, dizer, contar, é uma coisa que simplesmente a gente não conhece: não havia gravador na época. Agora, quando a gente recebe essa mitologia escrita, recebe uma variedade muito grande de versões, então, dá uma impressão falsa quando se fala da mitologia grega, como se isso fosse um conjunto de textos oficiais que tem uma versão determinada. Seria mais interessante a gente pensar que nós temos não uma mitologia, propriamente, mas sim, temos mitografias. Nós temos vários registros escritos desse negócio indefinido que a gente não consegue saber dar o contorno direito, que seriam os mitos", avalia Brandão.EssênciaRetrato de parte de uma História antiga, colagem de mitos ou apenas uma obra literária. Seja como for classificado o legado de Homero, e todo o arcabouço cultural que se seguiu a ele a partir da tradição helênica, é certo inferir que tal produção foi de suma importância à formação de todo um arcabouço que deu base à sociedade ocidental.Desses fundamentos, valores e princípios que perduram até hoje foram desenvolvidos os fundamentos, valores e princípios atuais. Hoje, pode-se dizer que toda a humanidade é influenciada, direta ou indiretamente, por aquilo que foi legado daqueles primórdios históricos, literários, mitológicos. No entanto, permanece sempre a curiosidade natural do ser humano em relação a sua origem e a seu destino. Quem sabe, um dia, contaremos com tecnologia que reconstrua momentos passados e revele "as verdades".Como disse Chico Buarque em sua canção "Futuros Amantes", sobre o amor que pode "esperar em silêncio", no futuro: "Sábios em vão/Tentarão decifrar/O eco de antigas palavras/Fragmentos de cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de estranha civilização".
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