Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Comício da Central do Brasil 1964

O texto abaixo foi retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional. Ele será utilizado, como fonte de consulta para a nossa próxima aula - 21-10-2010. Reproduza o texto e leve-o para a sala. Obs.: O texto será de uso individual.
Conservadores em desfile
Organizadas em oposição a João Goulart, as Marchas da Família se transformaram em forte apoio do governo militar, reunindo uma massa de civis nas capitais e interior do país
Aline Presot
19 de março, dia de São José, padroeiro da família. A data foi assim especialmente escolhida, naquele ano de 1964, como marco da primeira manifestação das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. O movimento civil conservador, então inicialmente organizado em oposição ao governo do presidente trabalhista João Goulart, eleito em 1961, se revestiria, pouco tempo depois, de caráter oficial para comemorar e apoiar o governo militar imposto com o golpe de 1964, se espalhando por diversas regiões do país. Os anos de 1960 foram de grande efervescência cultural, com a bossa nova, o cinema novo, os grupos de teatro Arena e Oficina, o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). No campo da política, não foi diferente. Crescia no país um expressivo grupo que temia o “perigo comunista” e que achava que o ideário “ocidental e cristão” estaria sendo ameaçado. Assim, a posse de Goulart foi recebida com grande alarmismo e, a partir daquele momento, o país viveria uma das fases de mais agudo anticomunismo na história do século XX, que culminaria na intervenção militar em 31 de março de 1964, dando lugar a um regime autoritário que se estendeu por 21 anos. Na primeira metade da década, ocorreram no país algumas das maiores manifestações públicas de cunho político. Grupos de orientações ideológicas opostas disputavam o apoio popular para suas bandeiras políticas, levando milhares de pessoas às ruas. De um lado, segmentos identificados com o conservadorismo político, que vinham, há algum tempo, se articulando numa intensa campanha de mobilização da opinião pública pela desestruturação do governo de Goulart. De outro, representantes das “esquerdas” (comunistas, trabalhistas, nacionalistas), que se encontravam organizados e arregimentados em torno do projeto das “reformas de base” - que compreendiam um programa de mudanças nas estruturas bancária, fiscal, urbana, universitária e agrária; a extensão do direito do voto aos analfabetos e oficiais não-graduados das Forças Armadas, além da legalização do Partido Comunista. A agenda reformista incluía ainda políticas de controle do capital estrangeiro, bem como o monopólio estatal de determinados setores da economia, essa, uma grande preocupação de Goulart. O governo de João Goulart, o Jango (1961-1964), foi marcado por diversas crises políticas, também por uma grave crise econômica, em parte herança das administrações anteriores, e pelo acirramento das tensões sociais. Foi também durante esse governo que se verificou um considerável crescimento da mobilização popular, especialmente a camponesa, em torno de projetos políticos. De 1961 a 1963 eclodiram movimentos grevistas em todo o país e duas paralisações gerais. O constante esforço de conciliação entre as demandas dos setores conservadores e nacionalistas levaria em pouco tempo o presidente ao isolamento político. Os setores de direita temiam a suposta tendência “esquerdista” de Jango, enquanto as esquerdas passavam a identificar suas propostas a mero exercício de retórica. No início do ano de 1964, o governo deu uma “guinada à esquerda” e empunhou, com entusiasmo, a bandeira das reformas de base. Um grande comício marcaria o primeiro passo na concretização dessas reformas, numa tentativa de reaproximação das massas, que se encontravam cada vez mais descrentes do governo. Foi sua última manobra política em busca de apoio. Na sexta-feira, 13 de março, nos arredores da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, Jango selava publicamente o compromisso definitivo com as reformas. Ao mesmo tempo, muitas famílias cariocas respondiam à convocação de se acender uma vela na janela de suas residências como forma de protesto pela realização do comício – o ato era também evidente posicionamento contra uma suposta ameaça comunista, encarnada na figura do presidente. Enquanto isso, em São Paulo, centenas de mulheres se reuniram na Sé e rezaram o terço. Jango responderia a esses ataques afirmando em seu discurso: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade de suas esperanças”. Foi o bastante para que seus adversários se organizassem numa ação espetacular. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade seriam um movimento de desagravo ao rosário, supostamente insultado por João Goulart. De fato, as mulheres da Camde (Campanha da Mulher pela Democracia), um movimento feminino organizado no Rio de Janeiro (então estado da Guanabara) em 1962 para se opor ao governo João Goulart, chegaram mesmo a distorcer suas palavras, afirmando que Jango teria dito que “os terços e a macumba da Zona Sul não teriam poder sobre ele”. As diferentes versões acerca da organização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade convergem ao delegar à irmã Ana de Lurdes (Lucília Batista Pereira, neta de Rui Barbosa) a idéia do “movimento de desagravo ao rosário”, que deu origem às Marchas (foi aliás, com o objetivo de “universalizar” o apelo ideológico e conferir um caráter ecumênico à manifestação que aquela que foi originalmente idealizada como “Marcha em Desagravo ao Rosário” transformara-se em “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”). Tal iniciativa foi compartilhada com o deputado Cunha Bueno, que, indignado com o discurso proferido por Goulart durante o comício, procurou a irmã e, recebida a sugestão, partiu naquela mesma noite para os preparativos da Marcha paulista que ganhou às ruas cerca de uma semana depois do comício do presidente. As Marchas seriam também uma forma de dizer às Forças Armadas que era chegado o momento de se intervir na política, o que, segundo seus organizadores, representaria um anseio do povo. Um público estimado em 500 mil pessoas compareceu à primeira manifestação, realizada na capital paulista. Patrocinada pelos empresários aglutinados no Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), a manifestação contou com a presença maciça de grupos femininos. A multidão gritava em coro: “Tá chegando a hora/ De Jango ir embora”. Carregavam faixas e cartazes com mensagens anticomunistas e contra o governo. Senhoras com rosários em punho desfilavam em nome da democracia, da moral e da religiosidade. Após a realização da primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, foram organizadas outras manifestações em diversas cidades. Eminentes figuras do meio político, que estiveram à frente do movimento em São Paulo, constituíram uma comissão com a finalidade de prestigiar as Marchas que viessem a se realizar em todo o país. Nas cidades de Bandeirantes, no Paraná, e Ipauçú, em São Paulo, reuniram-se o senador e padre Benedito Mário Calasans e os deputados Cunha Bueno, Hebert Levy e Conceição da Costa Neves, com o intuito de auxiliar os preparativos das Marchas que ocorreram nos dias 24 e 29 de março, respectivamente. Houve encontro semelhante em São Carlos, no interior paulista. Nesta cidade, a Marcha aconteceu no dia 2 de abril. Até mesmo em São Paulo, no dia anterior à primeira manifestação, ocorreram os chamados “‘comícios preparatórios’ em praças públicas de dez bairros da capital, que contaram com a presença de líderes estudantis, dirigentes de entidades de classes, bem como de parlamentares”, todos discursando em defesa das “liberdades democráticas” que, para eles, estariam ameaçadas por Jango. Entre os dias 21 e 29 de março, ocorreram Marchas nas cidades paulistas de Araraquara, Assis, Santos, Itapetininga, Atibaia, Tatuí, também em Curitiba, no Paraná, além das cidades de Bandeirantes e Ipauçú. Mesmo com a deposição de Jango, as marchas continuaram a ganhar força. Boa parte dessas manifestações, aproximadamente 85%, ocorreu posteriormente ao 31 de março, dia do golpe. Elas adquiriram, assim, o estatuto de um autêntico movimento em apoio ao governo militar. A grande passeata do Rio, ocorrida em 2 de abril, já estava sendo programada quando o golpe modificou o seu caráter, transformando-a numa espécie de “desfile da vitória”. O cortejo partiu da Igreja da Candelária, ao som do repicar dos sinos. A multidão percorreu um trajeto de dois quilômetros, atravessando as avenidas Rio Branco e Almirante Barroso até chegar à Esplanada do Castelo. No seu ápice, teria atingido, segundo algumas estimativas, o surpreendente número de um milhão de pessoas. A comemoração da vitória do golpe militar – ou da “Revolução”, como nomearam seus protagonistas — durou cerca de quatro horas. A propaganda organizada para a Marcha carioca buscava a adesão da população utilizando-se de valores e elementos simbólicos como o amor à pátria, o respeito à democracia, a defesa da família e das liberdades políticas. Um folheto distribuído pelas entidades promotoras da manifestação falava de seu caráter cívico-religioso, “destinado a reafirmar os sentimentos do povo brasileiro, sua fidelidade aos ideais democráticos e seu propósito de prestigiar o regime, a Constituição e o Congresso, manifestando total repúdio ao comunismo ateu e antinacional”. Os boletins eram distribuídos em igrejas, praias e clubes. A televisão e o rádio deram extensa cobertura aos preparativos da passeata. Também nas páginas dos jornais cariocas, dias antes de sua realização, podia-se ler: “em nome de sua fé religiosa compareça e traga a sua família”. Por todo o Brasil, as marchas pela vitória realizaram-se com o respaldo de grupos conservadores. Houve passeatas em São Paulo (500 mil pessoas), no Rio de Janeiro (1 milhão), em Belo Horizonte (200 mil), Goiânia (25 mil), Recife (200 mil), Niterói (50 mil), Fortaleza (200 mil), Florianópolis (50 mil) e Maceió (10 mil). Em Minas Gerais, várias dessas manifestações chegaram às cidades do interior, como Uberlândia, Formiga, Conselheiro Lafaiete, Lavras, Pains e Barbacena. Estima-se que cerca de 70 marchas ocorreram entre os meses de março e junho de 1964. Dessa forma, tais manifestações pretendiam demonstrar o caráter popular do golpe militar, uma vez que nesse momento boa parte dos cidadãos ia às ruas comemorar a vitória, dar “ação de graças” pelo afastamento do comunismo das terras brasileiras. A crença de que a intervenção militar expressava um desejo da sociedade civil serviu por alguns anos como motor para a realização das Marchas e justificativa para o apoio ao regime autoritário. Esta crença se encontrava sustentada por valores e normas morais, religiosos e sociais conservadores. No entanto, pouco depois, a força mobilizadora desse corpo de idéias foi se enfraquecendo. Durante toda essa “campanha anticomunista”, não se reivindicou, em nenhum momento, um regime de exceção prolongado, e sim uma intervenção breve e “restauradora”. Assim, paulatinamente, com o decorrer do governo militar, ocorreu uma mudança de postura por parte dos grupos que promoveram e aderiram às marchas, especialmente em função das denúncias de violência praticadas pelo regime: torturas, prisões e tantas outras arbitrariedades que deixaram uma dramática marca na história do país.
Aline Pressot é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde defendeu a dissertação “As Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964”, em 2004. http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=931
Informações, artigos, notícias complementares:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_marcha_da_familia_com_Deus http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_20mar1964.htm
http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=7641
http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_II/ediane_l._santana.pdf
http://apps.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/viewFile/559/381
http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a11v2447.pdf

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