Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

terça-feira, 9 de novembro de 2010

UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE A SALA DE AULA

“Toda vez que um segredo é descoberto, refere-se a um outro segredo num movimento progressivo rumo a um segredo final. Entretanto, não pode haver um segredo final.”
(Umberto Eco)

A sala de aula, espaço por todos chamado de minha, é onde nós nos realizamos.
Em um belo dia nela pela primeira vez entramos. Deslumbrados ficamos. O espaço tão sonhado que nos apontava a um mundo novo, a ser conquistado, a ser desnudado.
Avançamos por esse espaço com as lições que ali nos foram ensinadas. As pedras postas no caminho da vida foram, aos poucos, sendo retiradas com as ferramentas que nos deram dentro da sala de aula.
Outras ferramentas buscamos fora da sala de aula.
Admirávamos aquela pessoa meiga que de tudo sabia, a qual aprendemos a chamar de Tia mesmo sem sermos parentes. Depois de Professora pelas lições passadas. Olhávamos a pessoa meiga com o temor de ser castigado, ou de levarmos alguma “encomenda” direcionada a nossa mãe. Geralmente um pequeno pedaço de papel contendo o que havíamos feito naquela manhã ou tarde. Não sabíamos se era pior carregar o bilhete, escondê-lo, ou cumprir com a obrigação de entregá-lo a Mamãe arcando com as conseqüências do escrito.
Passavam os anos e nós passávamos de ano. Que felicidade. Estávamos na série seguinte. Sentíamos-nos adultos. Homens feitos.
Passavam as férias, viam as aulas.
Lá estávamos nós de volta ao nosso espaço: a sala de aula. Diferente este ano! Não havia em sua parede aqueles cartazes feitos por nós no ano que havia findo. Pelo contrário, eram paredes secas. Não tínhamos mais a professora meiga e o medo do castigo, ou do bilhete. Havia um monte de medos sem bilhetes: eram vários professores e professoras. O medo se multiplicava na proporção do aumento da responsabilidade. A cobrança em casa crescia.
Os grupos de amigos continuavam os mesmos, uma perda aqui ou ali sempre recuperada com uma nova contratação para recompor o elenco das brincadeiras. Havia aumentado o número de aulas junto com a quantidade de disciplinas. Haja tempo para estudar e estudar.
Surgiam os primeiros suspiros. Estes vinham acompanhados de grandes sonhos. Eram as fantasias do namoro nascendo em cada um. Logo se suspirava por uma, no ano seguinte por outra, porque a do ano anterior não tinha visto o suspiro, ou o tinha, simplesmente, ignorado.
Ano após ano aquele espaço chamado de sala de aula, agora minha classe, ia se tornando mais sério. Aumentava a idade, junto aumentava a cobrança paterna. Não mais existiam bilhetes para casa, íamos para casa com uma carta......de suspensão. Era na nossa mente a evolução: tínhamos saído do bilhete reclamatório à carta de suspensão. Alguns “evoluíram” demais: haviam recebido a Carta de Expulsão. Por um tempo cessávamos com as brincadeiras. Era o medo de evoluir mais um pouco.
Anos depois, sem que ninguém notasse, havíamos chegado ao 3º ano, do antigo científico, depois 3º ano do Ensino Médio. Deixemos as nomenclaturas de lado. Era a euforia de fazer o vestibular misturado a euforia de ter conquistado aquele suspiro de anos anteriores. O suspiro tinha virado namoro. Mas tínhamos de estudar para por à prova que a Tia, a Professora, os Professores e Professoras haviam feito o dever de classe, nos faltava fazer o de casa. Ou seja, eles e elas tinham nos ensinado. Passar no vestibular era dever nosso. Quem não passou por isso?
Minutos preciosos de televisão, de jogar bola, de namoro, foram trocados por horas a mais a frente dos livros, das apostilas e, agora com supervisão paternal.
Chegara o dia do exame vestibular. Antecedido que foi por um de angústia e uma noite de insônia. Saímos de casa para tentar um novo sonho: entrar em outra sala de aula. A sala de aula da Universidade. Cedo fomos acordados por uma mãe tensa, que na sua meiguice havia preparado algo leve para comermos antes de sair. A roupa passada nos esperava. Não podíamos sair tarde visto não poder chegar atrasado como nos dias de aula. Deixávamos uma família rezando e nos fazendo ter uma responsabilidade ainda maior. A única possível. Passar no vestibular. Claro que seria uma conquista nossa, mas faria todos da casa mais felizes.
Tensos escutamos pelo já antigo rádio, os nomes sendo lidos um a um, em ordem alfabética e por curso, por uma voz que não sabíamos de quem era. Nem chegava o curso para o qual tínhamos feito, nem chegava o nosso nome. Finalmente o locutor (palavra em desuso) falava em nosso curso. Os primeiros nomes aprovados, felicidades para muitos, tristeza para milhares. Festa em nossa casa. Festa na casa dos amigos. Mas havia alguém do grupo a não passar. Era um elo da corrente que ficava na estrada do tempo, que é a estrada da vida.
Choramos junto o ingresso na Universidade. Somente depois percebemos que todo aquele choro de felicidade, aquelas lágrimas de alegria, era a forma que a sala de aula a nos unir durante tanto tempo seria a mesma a nos separar. Havíamos ingressado na Universidade em cursos diferentes. Salas de aula diferentes. Olhamos-nos de repente: estávamos sós no meio de tanta gente. Esse era o sentimento compartilhado pelos velhos amigos de tantas salas de aula. No início do curso ainda conversávamos bastante. Com o tempo a nova sala de aula foi criando novos amigos, enquanto os velhos amigos tinham cada vez menos tempo para conversar. Eram trabalhos, provas, seminários. Eram novos grupos de amigos. A sala de aula do nosso futuro nos obrigava a conversar menos com nossos amigos de sempre.
Como é paradoxal essa sala de aula.
Era chegado o momento de glória da família. Havíamos terminado o curso universitário. Chegara o dia da aula da saudade, da colação de grau, do baile de formatura. Interessante, durante a aula da saudade se falou em saudade dos amigos feitos na Universidade. Não ouvimos falar dos outros amigos feitos na alfabetização.
Havíamos feito cursos na área de educação, mas basicamente licenciaturas.
Agora era chegada a hora de trabalhar. Trabalhar onde mesmo? Numa sala de aula.
Entrávamos em nossa primeira sala de aula como professores. Difícil dizer qual medo foi maior: o frio na barriga do profissional formado ou do menino que chorou para não ficar na sala de aula quando levado pela mãe.
Dilema nunca resolvido.
Mas estávamos realizados. Éramos profissionais. Éramos professores e agora tínhamos a nossa própria sala de aula.
Havíamos evoluído. De ocupantes de uma sala a proprietários de uma só para minha pessoa (e haja redundância para dizer que temos uma sala de aula).
A sala de aula é o espaço do homem. Do homem que se realizou. Pois todos os profissionais percorreram este caminho nestas linhas ditas. E mesmo aqueles que dizem não trabalhar em uma sala de aula – agradecendo a Deus, ainda por cima -, não sabem que vivem o tempo todo na maior sala de aula da alma humana: a vida.
Parabéns por sua existência sala de aula, obrigado por nos ensinar a viver.

Um comentário:

Sonia Salim disse...

@juniorflor, seu texto é maravilhoso! Fiquei encantada com a sua maneira de escrever, foi evoluindo na trajetória e o desfecho foi glorioso.
Amei! Parabéns!
Grande abraço!

@soniasalim