Vida de professor da rede pública

Súplica Cearense

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Formação continuada

Beatriz Aisenberg fala sobre leitura em História e Geografia
A pesquisadora argentina afirma que, para formar leitores autônomos, cabe aos professores ouvir o que os alunos entenderam sobre os textos


De um lado, estudantes com dificuldade de interpretação de textos sobre História e Geografia. De outro, mestres que julgam ser a leitura conteúdo das aulas de Língua. Para a pesquisadora argentina Beatriz Aisenberg, docente da Universidade de Buenos Aires e especialista em Didática das Ciências Sociais, esse é um dos grandes problemas a serem enfrentados pela escola. "Ensinar a interpretar é, sim, trabalho dos professores das diferentes disciplinas." Licenciada em Ciências da Educação, Beatriz investiga a relação da leitura no ensino e na aprendizagem de História há mais de dez anos. Considerada uma das precursoras das investigações em Didática das Ciências Sociais (disciplina que na Argentina inclui conteúdos de História, Geografia e de temas relacionados à política e à economia), ela faz parte de um grupo de pesquisa que procura descobrir quais as condições de trabalho que promovem a aprendizagem de Ciências Sociais. As aulas de educadores voluntários da capital argentina são gravadas e analisadas por especialistas liderados por Beatriz. O foco do trabalho são os polivalentes do nível primário (que lá vai até o 7º ano). Mas ela garante: "Os especialistas podem ajudar ainda mais a garotada a entender os textos de cada área". Nesta entrevista, concedida em seu apartamento, Beatriz explica como fazer isso.Qual a principal queixa dos professores em relação às atividades de leitura em Geografia e História?BEATRIZ AISENBERG A de que as crianças não sabem ler e interpretar bem. Porém boa parte dos problemas não tem a ver com a habilidade geral de leitura. As pesquisas psicolinguísticas mostram que essa não é uma competência geral que se aplica a tudo - sei ler uma carta, sei ler qualquer coisa. É um processo complexo entre o leitor e o que ele lê. Isso se acentua ainda mais quando falamos de História, por exemplo. O entendimento de um texto dessa área tem muito a ver com o que o leitor já sabe sobre ela. Se ele não possui um marco de conhecimento, a compreensão se torna muito difícil. De onde vem a dificuldade dos alunos nas atividades de leitura?BEATRIZ Por acreditarem na ideia de que ler é uma tarefa fácil, muitos educadores deixam os estudantes sem ajuda nesse momento. Meu grupo de pesquisa busca caracterizar as condições didáticas que permitem oferecer a eles o apoio necessário para que comprendam os textos e aprendam história por meio da leitura. Sem ajuda, é claro que eles têm dificuldade - ora, se soubessem ler, não precisariam ir à aula. Por isso, a escola deve ir progressivamente formando leitores. A autonomia não é algo que se constrói em uma semana. Há muitas intervenções a serem feitas pelo docente para que todos consigam ir compreendendo os textos das diferentes áreas e, com isso, adquirindo mais fluidez e independência nas práticas de leitura.

Quais são as intervenções que o professor de Ciências Sociais, especificamente, deve fazer?

BEATRIZ O grupo de pesquisa de que faço parte trabalha com distintos tipos de situação de leitura. Os alunos leem sozinhos, mas também há muitas atividades coletivas em que a turma é ajudada a reconstruir o mundo histórico apresentado no texto. Primeiro, há um trabalho forte do docente de rechear o texto com outras informações. Existe muito conhecimento implícito. Coisas que são óbvias para os adultos não são para os pequenos. Por isso, é preciso conversar sobre o tema em questão - a vida dos guaranis, por exemplo - para escutar a interpretação deles e, com base nisso, ajudá-los a avançar a partir do ponto em que entendem.

Há alguma recomendação específica para a leitura individual?

BEATRIZ Isso depende do conteúdo e dos propósitos colocados. Em geral, a sugestão é fazer uma primeira aproximação, uma leitura em silêncio. Apresentada a problemática, o professor diz "agora, cada um lê sozinho". Em alguns casos, indica-se que quem terminar a leitura converse com o companheiro ao lado sobre o conteúdo. Só então começa a reconstrução coletiva: "Vamos ver o que esse autor nos diz". Depois, é hora de analisar o que todos entenderam e ajudar os que menos compreenderam - verificando que informações não tinham.

Reler faz parte das atividades?

BEATRIZ Sim, em algum momento o docente pode falar "agora, pensem nessa questão e releiam determinado trecho". Em outros casos, ele começa com perguntas abertas ou propõe um estudo de caso. Quando o tema é "movimentos migratórios internos", por exemplo, a aula pode começar com o relato das experiências vividas por uma pessoa vinda do interior para a capital na década de 1940. Os testemunhos são entradas potentes para distintas temáticas históricas.

Que cuidados se deve ter ao encaminhar a leitura coletiva?

BEATRIZ Em primeiro lugar, deve-se pensar naqueles que têm mais dificuldades. Normalmente, os que mais sabem são os que mais falam e têm maiores condições de fazer perguntas. Por isso, eles se dão conta com maior facilidade de que não estão entendendo algo na aula. Nessas situações, o educador corre o risco de interagir apenas com cinco ou seis que são rápidos, em vez de atender aos que mais necessitam. É fundamental se aproximar dos que mais necessitam para ajudá-los. Em segundo lugar, é importante ir além da reprodução das palavras do texto e ajudá-los a reconstruir a temática histórica, relacionando fatos políticos, religiosos e econômicos. Essa é a base do trabalho intelectual do historiador. Como criar uma representação mental sobre a vida numa situação totalmente diferente da que eu conheço, em outra sociedade, em outro momento? A tarefa demanda estabelecer relações e se perguntar muitas coisas.

É preciso traduzir as expressões que as crianças não conhecem?

BEATRIZ Geralmente, durante a aula, se dá muito destaque às palavras que elas não entendem. Quando um termo é estranho, não há muito problema porque ele é visto como tal. Os maiores causadores de confusão são aqueles que o docente supõe serem conhecidos. Muitas vezes, eles têm um significado totalmente diferente no contexto do texto trabalhado. Houve uma situação em que uma voluntária de uma pesquisa estava falando sobre a Revolução de Maio (movimento que levou à independência da Argentina) e mencionou a palavra "monopólio". Uma aluna pensou que se referia ao jogo de tabuleiro Monopoly (no Brasil chamado Banco Imobiliário). Nada mais coerente para os pequenos que "monopólio" seja um jogo, algo totalmente estranho para mim ou para a professora. Esse é um erro muito grosseiro, mas com isso quero dizer que os estudantes aplicam ao texto um conhecimento prévio. Se o educador fica atento ao que eles estão entendendo, se dá conta do que é necessário fazer para que realmente compreendam o conteúdo trabalhado.

Por que ler para responder a um questionário não funciona?

BEATRIZ Porque as crianças leem sem entender. Localizar informações é algo muito fácil, mas isso não é ler! Escolhemos um texto porque queremos que elas aprendam determinados conteúdos. Quando dizemos que o leiam e depois "respondam às perguntas", anulamos a autonomia delas. Porém não podemos renunciar às questões porque elas nos orientam sobre o que é interessante discutir. Uma maneira de trabalhar é introduzir um tema com uma problemática que vai permear três ou quatro aulas. Outra é começar com uma questão simples, que pode ser mais potente do ponto de vista intelectual por ser de mais fácil compreensão. Se a ideia de que a leitura é fácil permanecer , muitos vão continuar saindo da escola sem saber ler.

Há um meio de escolher o melhor texto para trabalhar em sala?

BEATRIZ Não existe um ideal. O bom texto é o que permite melhor abordar o tema que vamos ensinar. Após definir o conteúdo da aula, começamos a ler tudo o que encontramos sobre ele - escrito para o público infantil ou não - e nos perguntamos: o que esse material tem de bom? E de ruim? Ele atende ao meu propósito de ensino? Além disso, é preciso considerar que um texto curto é muito mais difícil de entender do que um longo. O que se pode apreender de uma página sobre a Revolução Francesa? Em 20 páginas, há mais elementos para que quem não conheça o tema possa reconstruí-lo e compreendê-lo.

Como desenvolver na turma a capacidade de análise crítica dos textos?

BEATRIZ Na verdade, quando alguém começa a ler e reconstruir, já está indo pelo caminho crítico. Não há leitura que não seja crítica, principalmente quando se trabalho a reconstrução do mundo histórico do texto. Nesse ponto, a seleção do material é muito importante. Em História, por exemplo, tenho de buscar textos que façam alusão a diversos autores e contenham citações variadas. É preciso fazer todos perceberem que outros pesquisadores também já estudaram o tema e que muitas vezes apresentam opiniões distintas sobre ele. Além disso, é primordial ensinar a reconhecer as marcas do conhecimento histórico. Elas não podem ver os textos de História como uma janela para o passado, mas como uma interpretação de um autor sobre determinados fatos apresentados.

Como fazer com que todos participem das situações de interpretação?

BEATRIZ Não pensamos em algo que seja externo ao conhecimento. Buscamos desenvolver a paixão pelo assunto e criar situações que permitam à garotada estabelecer um vínculo com ele. Não é preciso criar coisas estranhas, como palavras cruzadas, para isso. O ideal é trazer problemáticas que gerem interesse e promover situações nas quais os alunos formulem perguntas. É preciso também ter paixão. Se o educador não vibra com o que está ensinando, é muito difícil que a sala se entusiasme e gere um vínculo positivo com o conhecimento.

De que forma se determina o tempo dedicado à interpretação de textos?

BEATRIZ Se ensino rápido e leio vários textos de maneira superficial, estou formando um tipo de sujeito. Se quero que ele entenda a complexidade do mundo social e que considere a existência de conflitos e de atores com diferentes interesses, tenho de ensinar essa complexidade. Essa segunda possibilidade leva dias e dias de análise, mas traz um resultado totalmente distinto. Um garoto pode decorar uma lista de causas para determinado fato histórico, mas o que elas significam, o que uma tem a ver com a outra? O professor tem de explicar e levá-lo a pensar, reconstruir, ler e discutir muito.

Quando é hora de a turma escrever?

BEATRIZ Começamos a tomar a escrita como um objeto de estudo nos últimos tempos. Temos claro que ninguém pode escrever sobre o que não sabe. É uma coisa óbvia, mas que a escola às vezes ignora. Em princípio, trabalhamos com situações de escrita depois de muita leitura para que a turma esteja apta a reconstruir a problemática histórica.

As escritas dos alunos servem para avaliar as aprendizagens?

BEATRIZ Elas dão informações apenas sobre parte do que a turma sabe. Geralmente, eles reescrevem muitas vezes. É preciso verificar as mudanças de uma produção para a outra e escutar por que decidiram mudar. Que relação há entre o que uma criança escreveu e o que sabe de Geografia? Isso não está claro. Sabemos que os textos e as provas escritas não são nada lineares. Temos de avaliar o que cada um aprende e o que sabe, mas a produção escrita sozinha não fornece essas respostas. Aliados ao que todos escreveram, os comentários feitos nas situações de leitura coletiva são muito úteis para avaliar o que foi aprendido.
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA

Didáctica de las Ciencias Sociales - Aportes y Reflexiones, Beatriz Aisenberg e Silvia Alderoqui, 304 págs., Ed. Paidós, 52 reais

La Formación de los Conocimentos Sociales en los Niños, Alicia Lenzi e José Antonio Castorina, 288 págs., Ed. Gedisa, 70 reais

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